Escrito por: Tales Kamel, Mestre em Tecnologias Construtivas, Conservação e Restauro pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Pará, UFPA (2016), e Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade da Amazônia – UNAMA (2013). Membro do LACORE – Laboratório de Conservação, Restauro e Reabilitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU UFPA. Sócio Fundador da empresa Kamel Arquitetura, que atua no Brasil, e da Urban Obras Matosinhos KM.
No coração da Amazônia, onde o verde das florestas se encontra com as águas barrentas de nossos rios, ergue-se a cidade de Belém, um lugar onde a história, a arte e a cultura se misturam como uma incrível receita de casa de vó.
Nesta cidade, por mais de quatro séculos, a arquitetura não é apenas uma forma de construir edifícios, mas sim uma expressão vibrante de identidade, de influências regionais, amazônicas, mas também europeias. A “Paris na américa” como diziam na transição do século XIX-XX, tem em seus exemplares arquitetônicos, o Theatro da Paz, o Complexo Feliz Lusitânia, o Parque da Residência, Parque da Soledade, seus inúmeros jardins históricos, entre outros espaços que mantem vivos em cada um de nós a memória de quem somos.
A arquitetura de Belém, com suas belíssimas igrejas, serve como testemunho de um passado, onde a fé se edifica dentro de cada paraense. A Catedral da Sé, com suas paredes testemunhaM séculos de devoção, não é apenas um lugar de culto, é um espaço onde cada detalhe conta histórias de fé e resistência.
Entre os marcos que contam essa história rica e multifacetada, destaca-se o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações de fé no Brasil e do mundo, momento este que transcende o lado religioso e se entrelaça com o patrimônio cultural da região. Durante o Círio, as portas da Catedral da Sé portas se abrem para acolher milhares de devotos, transformando o interior em um palco de fé que ressoa com orações e louvores.
O segundo domingo de outubro é mais que uma celebração religiosa, é uma verdadeira obra de arte coletiva. As procissões se tornam um desfile edificante onde a luz das velas se entrelaça com o anoitecer na noite de trasladação e com o amanhecer no domingo de Círio. Os andores ornamentados, delicadamente esculpidos e adornados, são verdadeiras obras de arte popular, que refletem o zelo ea criatividade do povo paraense e dos romeiros que vem de diversas partes do Brasil. Eles transportam a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que, nas suas mãos, carrega não apenas a devoção do povo, mas também a herança cultural que se perpetua a cada ano.
A música paraense é um rico e diversificado reflexo da cultura e das tradições do estado do Pará, com influências que vão desde as raízes indígenas, as sonoridades africanas e europeias, caracterizada por uma forte conexão com a natureza e as vivências do povo amazônico, do Carimbó, ao Tecnobrega. Essa musicalidade, se reflete nas palmas que acompanham os cânticos, os desfiles ornamentados com flores, assim como os aromas das comidas típicas transformam a cidade em um mosaico de sensações e cores durante o Círio.
Neste contexto, o Círio de Nazaré se ergue como um elo entre o passado e o futuro, onde a fé popular se mescla com as tradições que formam a identidade do estado do Pará. É a arquitetura e o patrimônio histórico dialogando com o fervor coletivo, quebrando as barreiras do tempo e mostrando que a cultura é, de fato, uma expressão viva, que deve seguir firme e forte dentro de cada belemense.
O Círio transcende a religiosidade ainda mais quando em 2013, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) incluíram o Círio de Nazaré na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade. E alguns anos antes, em 2004, a celebração foi tombada como Patrimônio Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Os laços formados durante essa festa são tão sólidos quanto as estruturas das igrejas que compõem o cenário histórico da cidade, a exemplo da Basílica Santuário Nossa Senhora de Nazaré. Juntos, celebramos uma imersão na cultura e na espiritualidade, mostrando que a Arquitetura não apenas abriga a fé, mas também a perpetua de geração em geração.
A cada ano, vemos o Círio de Nazaré ser mais que nosso o famoso “natal dos paraenses”, mas também um laço de fé que une a arquitetura, o patrimônio histórico e a vivência cultural de um povo, que se reúne sagradamente no segundo domingo deoutubro. É um lembrete poderoso de que, ao celebrarmos nossas raízes e nossas histórias, estamos, na verdade, construindo um futuro em que a fé e a diversidade cultural coexistem em harmonia, abrindo espaço para todas as crenças. Afinal, é na profundidade dessa conexão que encontramos a verdadeira essência do ser humano, sempre buscando compreender e expressar sua relação com o sagrado, com o espaço e com sua identidade coletiva.
Como diz a linda música de Fafá de Belém, uma das maiores vozes do Estado do Pará: “Quem sabe assim verá que a corda entrelaça todos nós, sem diferenças, costurados num só nó. Amarra feita pelas mãos da Mãe de Deus. Estranho, eu sei, Juntar o santo e o pecador num mesmo céu, puro e profano, dor e riso, livre e réu, seja bem-vindo ao Círio de Nazaré”.
*Artigo publicado pelo CAU/PA
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