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A CIDADE EM CENA: por onde andam o processo participativo e a justiça social?

Foto: Thalita Sousa

 

Ricardo Mascarello é arquiteto e urbanista e conselheiro federal por Sergipe do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR)

Já vimos este filme antes! Esta peça de teatro já está em cena há mais de 20 anos. Parece muito entediante falarmos do mesmo espetáculo, dos mesmos atores e da mesma encenação. Mesmo que estejamos cansados dos ensaios tão exaustivos e desafiadores dos planos diretores é necessário retomarmos este palco, abrirmos a caixa preta e mudarmos o ato em cartaz para estabelecermos um novo espetáculo, ainda que seja o mesmo grupo teatral.

Até o final dos anos 90, tínhamos planos diretores sem construção participativa e com bases conceituais puramente tecnicistas, quando basicamente a lei regia o uso e ocupação do solo a partir do zoneamento urbano e seus respectivos regimes urbanísticos usuais de taxa de ocupação, índice de aproveitamento, altura máxima das edificações, recuos de jardim e o tipo de uso. Estritamente cumpriam a função de disciplinar e regrar as novas edificações nas cidades.

Com a constituição de 1988, em seu capítulo da política urbana, iniciam-se desdobramentos que trilharam os anos 90 e se consolidaram a partir do Estatuto da Cidade, em 2001. Através das diretrizes e instrumentos consolidados pelo Estatuto da Cidade, os novos planos diretores ganharam bases filosóficas e ideológicas em relação ao Direito à Cidade e à Função Social da Propriedade, traduzida pela inserção de instrumentos para o cumprimento da justiça social e de uma construção participativa envolvendo toda a sociedade. Eles se tornaram uma ferramenta de desenvolvimento urbano e social, muito além de uma mera regulamentação. A partir da obrigatoriedade de cidades acima de 20 mil habitantes possuírem seu plano diretor, entre os anos de 2003 a 2010, tivemos uma ampliação significativa do quantitativo de municípios brasileiros que construíram seus planos diretores. Passados 20 anos do Estatuto da Cidade, é importante reavaliarmos a sua implementação, verificando-se as suas potencialidades e fragilidades ao longo de sua trajetória.

Vivemos um momento de enfraquecimento das políticas urbanas a partir da extinção do Ministério das Cidades em 2019, o consequente desmantelamento das políticas urbanas de planejamento e o esvaziamento do cumprimento das diretrizes para a construção de Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, dos Planos de Mobilidade Urbana e dos Planos de Habitação, entre outros. Percebemos que, na última década, a construção participativa, pré-requisito para a constituição das etapas de elaboração dos planos diretores, vem perdendo força, ficando meramente como proforma de cumprimento da obrigatoriedade do processo participativo. Os municípios desenvolvem um número mínimo de audiências sem a efetiva participação, deixando de lado a construção processual e contínua através de oficinas e debates. É preciso urgentemente rever este processo de forma crítica e analítica, a fim de que tenhamos uma nova modelagem contemporânea para a construção dos planos diretores. Destacamos aqui o exemplo marcante e emblemático de participação social nos referindo ao Orçamento Participativo instituído em Porto Alegre no período dos governos democráticos e progressistas, que virou referência para o mundo e foi instituído em diversas cidades, em vários continentes.

Outro ponto significativo está evidenciado na ausência do cumprimento metodológico das etapas de construção, a exemplo de Leitura da Cidade e Diagnóstico Urbano, Pactuação das Propostas, Constituição dos Instrumentos e Estratégias e Projeto de Lei. Temos vários exemplos em todo o país nos quais os interesses econômicos dos grandes grupos, principalmente do mercado imobiliário, instituem uma supremacia de poder convergindo para seus interesses próprios, em detrimento à justiça social e da cidade para todos. As prefeituras municipais muitas vezes passam a ser um mero ator em todo o processo, propiciando a apresentação de projetos de lei já previamente elaborados que privilegiam os interesses econômicos.

Neste teatro urbano, o palco é constituído por uma encenação na qual o poder econômico é o ator principal, a prefeitura uma coadjuvante e a população uma espectadora de um cenário previamente consolidado e nada animador.  O verdadeiro cenário deveria ser composto pela materialidade da cidade, das vidas dos seres que ali habitam, das relações socioespaciais preexistentes, das morfologias urbanas tradicionais e da constituição do ambiente dos patrimônios culturais e naturais. Uma verdadeira caixa preta fechada que contempla apenas os atores principais previamente estabelecidos.

Com todo este teatro assistimos a um espetáculo nada animador, no qual vemos um cenário de edifícios desconfigurando paisagens tradicionais, ocupações em áreas de risco, áreas de preservação ambiental devastadas e, acima de tudo, a cena da exclusão social. Em pleno século XXI, com o avanço das mudanças climáticas, os consequentes desastres urbanos, o aumento da extrema pobreza e de moradores de rua, é preciso revermos nosso papel social e revertermos este contexto, resgatando a ética e a responsabilidade dos compromissos da arquitetura e urbanismo no Brasil. E para completar esta peça urbana, há um novo ator oculto que aparece na última cena atrás das cortinas e se debruça entre as coxias ameaçando o que já vinha antes sendo ameaçado! Mais um coadjuvante, chamado personagem do licenciamento simplificado, que traz uma indumentária de afrontes às legislações municipais, travestido de vestimentas de facilitador, mas de caráter duvidoso, coloca em cena o balcão único e a responsabilidade solidária. Ao tempo que parece ser um mocinho salvador, pode ser perigoso e maquiavélico, se prestando, a qualquer instante, a infringir ao bem social e aliar-se ao poder econômico. O mais tenebroso deste possível tirano é jogar a responsabilidade do Estado para qualquer um. Poderemos ter um crime perfeito na última cena, sem sabermos realmente identificar o criminoso.

Neste ir e vir do antes, durante e depois, almejamos um porvir dos espaços participativos em uma visão contemporânea. Queremos uma cidade com justiça social e preservação do patrimônio cultural e ambiental. Sabemos que a cidade é um espetáculo de disputa entre vários atores. Neste teatro urbano, continuará a briga constante entre os distintos atores disputando o melhor lugar do palco! Nos interessa abrir um espaço neste picadeiro para toda a sociedade e para o bem comum da cidade, pois apesar das disputas que sempre existirão, as premissas deverão ser voltadas para um espetáculo que satisfaça todo o público pagante, a sociedade.

Na perspectiva de um porvir frente às cidades mais justas, acreditamos em sensíveis atributos consistentes do ponto de vista técnico e metodológico para a implementação efetiva dos instrumentos urbanísticos nas dimensões de cidades as quais eles se adequam. Continuamos sempre esbarrando nas questões políticas e nos interesses dos que lucram com a cidade, em detrimento aos que necessitam de um habitat mais adequado com moradia, infraestrutura, acesso aos serviços e equipamentos urbanos. É importante ainda o entendimento futuro para um olhar em relação à diversidade das distintas escalas urbanas, atentando para pequenas, médias e grandes cidades e a inter-relação entre o meio urbano e rural. É necessária a articulação de uma forma de governar compartilhada entre governos municipais vizinhos e os diversos entes constituídos pela sociedade civil.

Finalizo esta breve reflexão analítica referenciando os valores sociais do Estatuto da Cidade e a trajetória de lutas e insucessos no Brasil. Temos o perfeito discernimento entre os atributos constitucionais que sustentam a normatização de ordem pública e interesse social, assim como os esforços colaborativos que devemos imprimir e entrelaçar entre os vários entes institucionais de movimentos sociais, entidades, coletivos, universidades e líderes comunitários para a construção futura na compreensão e constituição das cidades. Uma tríade de governança cidadã conjunta entre a esfera econômica, científica e social. Que sigamos nutridos e sustentados pelo Estatuto da Cidade e pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável com olhos em 2030, 2040 e 2050.

*Artigos divulgados neste espaço são de responsabilidade do autor e não correspondem necessariamente à opinião do CAU/BR.

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