
As cidades tendem a refletir a imagem das sociedades que ocuparam os seus territórios ao longo da história. Passado e presente estabelecem no espaço urbano a simbiose necessária para a construção do futuro. Para se compreender uma cidade não basta aprecia-la através de mapas ou fotografias, é preciso conhecer de perto os seus diferentes espaços, a sua cultura e a maneira como se comporta a sua gente.
É comum ver as pessoas se referirem às cidades europeias para exemplificar lugares ideais para viver ou visitar. Apesar das idiossincrasias encontradas em algumas dessas cidades, há que se reconhecer a excelente qualidade de vida e o alto nível de urbanidade em seus espaços. Esses atributos se devem, em grande parte, à consolidação da política do bem-estar social – welfare-state – após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para compensar a barbárie sofrida durante esse período obscuro da história da humanidade.
A partir de 1980, novos paradigmas econômicos passaram a regular a ordem mundial e, com eles, despontaram novas maneiras de ver e tratar as cidades. Planejadas sob a ótica mercadológica, assistiu-se à forte concentração de investimentos nos principais centros de negócios, enquanto as periferias eram relegadas ao segundo plano. Esse modelo de gestão, com o passar do tempo, começou a apresentar rupturas na estrutura urbana das cidades. O aspecto mais visível dessa constatação está no crescimento vertiginoso de bairros periféricos, geralmente ocupados pelas camadas mais pobres da população e por imigrantes e seus descendentes. São áreas marginalizadas que tendem a configurar fortes aspectos de exclusão social.
Essa espécie de apartheid social que vem predominando em algumas grandes metrópoles europeias adquiriu proporções alarmantes pelo mundo afora. Os recentes naufrágios de embarcações transportando imigrantes clandestinos do continente africano para a Europa trouxe à tona essa grave questão. São pessoas que deixam as suas terras fugindo das guerras, da opressão política e religiosa, da miséria, da fome e, principalmente, da falta de oportunidades de emprego para realizar um trabalho digno.
A dimensão dessa tragédia humana não pode ser menosprezada e muito menos ser tratada exclusivamente pelo viés da economia europeia. A dimensão atual dessa questão não mais permite que ela seja apreciada pela ótica simplista e oportunista da mão de obra barata e informal. Os altos índices de desemprego indicam que a União Europeia não suportaria ampliar o seu contingente de cidadãos desempregados. Não é admissível, portanto, que em um mundo marcado pela má distribuição de renda e repleto de paraísos fiscais, as nações mais ricas do planeta não se motivem a descruzar os braços e enfrentar pra valer essa preocupante realidade social.
Nas cidades brasileiras algo semelhante está acontecendo. A cada dia aumenta o abismo social que separa as periferias urbanas do restante da cidade. Enquanto gastos exorbitantes são feitos em áreas privilegiadas verificamos uma absoluta falta de investimentos em infraestrutura urbana nas áreas periféricas. Sem programas habitacionais consistentes e financiamentos públicos subsidiados para a construção ou melhoria da habitação popular, os contrastes urbanos tendem a se agravar irreversivelmente.
O que fazer para reverter esse quadro desolador que se dissemina pelas cidades brasileiras? O primeiro passo seria acabar com as barreiras do preconceito social que permeia algumas camadas mais prósperas da nossa sociedade. Se não houver uma efetiva tomada de consciência a respeito da gravidade atual desse problema, dificilmente conseguiremos reverter o processo de degradação urbana que se instalou em nossas cidades. Ainda há tempo, mas o resultado dependerá exclusivamente do esforço de todos nós.
Publicado em 11/05/2015. Fonte: O Globo (reprodução integral autorizada pelo autor).