
Considerada a primeira arquiteta do Brasil e talvez da América Latina, Arinda da Cruz Sobral nasceu no dia 4 de agosto de 1883. Filha de Margarida Perpétua de Oliveira Sobral e João José da Cruz Sobral.
Se formou no curso normal, em 1906, e começou a trabalhar como professora da Prefeitura do Distrito Federal antes de ingressar na universidade.
Em 1907, iniciou os estudos do curso de Arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), o primeiro curso do país. Era a primeira e única mulher na turma.
Em 16 de dezembro de 1911, O Paiz, jornal de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro, registrou a notícia com o título “Futura architecta” de que Arinda seria a primeira e futura arquiteta do Brasil formada pela ENBA. Além disso, no acervo do Arquivo Histórico do Museu D. João VI, o livro de premiações e diplomas expedidos entre 1903 e 1970 traz o nome dela como primeiro registro de mulher formada no curso de Arquitetura, em 1914.

Trancrição: Registro do título de habilitação em Architectura da Senhora D. Arinda da Cruz Sobral. Em nome do Governo da Republica dos Estados Unidos do Brasil. O Prof. Rodolpho Bernadelli, Diretor da Escola Nacional de Bellas Artes, confere a D. Arinda da Cruz Sobral, nascida em 4 de agosto de 1883 e natural da Capital Federal, o presente título de habilitação no curso de Architectura, de conformidade com o art. 54 dos anexos do decreto 983 a 8 de dezembro de 1890, por ter tido aprovada em todas as disciplinas do mesmo curso. Escola Nacional de Bellas-Artes, Rio de Janeiro em 30 de setembro de 1914. (Assignados) O Diretor Prof. Rodolpho Bernadelli, o professor mais antigo do curso Carlos Cianconi, o secretário D, Gama Rosa (Assignava). A titulada Arinda da Cruz Sobral achava-se presente de uma fita cor de rosa, uma caixa de prata de forma circular encerrando o selo da Escola Nacional de Bellas-Artes, sobre lacre encarnado. Nada mais continha-se em o dito título, do qual fiz extrair o presente registro, que está conforme o original, pelo que, subscrevo 80 este e assino em 30 de setembro de 1914. Dr Gama-Rosa, secretário.
Outra informação que remete a Arinda é um antigo edifício localizado em uma área tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN): a Capela São Silvestre, situado no Parque Nacional da Tijuca. Há pesquisas que revelam que o primeiro projeto feito por uma mulher no país, finalizado em 1918, foi essa igreja e Arinda é a responsável pelo patrimônio tombado em 1967 e que sobreviveu a um incêndio, em 1918, e a um deslizamento de terra, em abril de 2010.
Arinda foi a primeira mulher a receber o título de arquiteta na América Latina e/ou América do Sul. O registro mais conhecido e antigo era da arquiteta uruguaia Julia Guarino datado de 1923. Arinda faleceu em 1981.
Camila Belarmino

A invisibilização da história de Arinda Cruz e outras mulheres arquitetas formadas no início do século XX foi um dos motivos que levou a historiadora Camila Belarmino a começar sua pesquisa de doutorado no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo, em São Carlos.
Camila é bacharel e licenciada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2008) e mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2012). Realiza doutorado na Universidade de São Paulo na área de Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo no Instituto de Arquitetura e Urbanismo. Possui experiência em docência no ensino superior e na produção de materiais didáticos. Na pesquisa atua, principalmente, com os seguintes temas: história e historiografia, arquitetura, urbanismo, design, artes, gênero e relações étnico-raciais.
Entrevista com a pesquisadora
- Explique a sua pesquisa resumidamente (metodologia, variável e unidade de análise, recorte temporal).
A minha pesquisa consiste numa investigação histórica, isto é, eu aplico o método de pesquisa histórica que se fundamenta na formulação de problemas, de hipóteses e verificação destas através de fontes. Importante destacar que estas fontes, que são denominadas como primárias, são fundamentais na pesquisa histórica.
Hoje, no geral, quando falamos em ‘fontes’, o comum é pensar em referência bibliográfica, sites, entre outros. Mas, para uma pesquisa histórica, as fontes são um conjunto de documentos produzidos na época do recorte temporal da pesquisa, no meu caso, entre as décadas de 1910 e 1960. Portanto, a fim de encontrar as primeiras arquitetas do país, eu recorri aos documentos oficiais da Escola Nacional de Belas Artes. Esse acervo foi fundamental, pois lá podemos encontrar atas de reuniões de colegiado, registro de diplomas, currículos dos cursos oferecidos pela instituição, cartas, boletins escolares, fotos etc. Também foi muito importante a consulta à diversos jornais do período disponíveis no formato digital na Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Eu foco nos dados que dizem respeito às trajetórias das arquitetas e vou sistematizando, organizando as informações, buscando detalhes e relações entre os agentes históricos. Para compreender melhor os significados das ações destas agentes, mulheres arquitetas, eu faço uso de um embasamento teórico que, neste caso, são alguns conceitos de Pierre Bourdieu, Joan Scott e a categoria de gênero e a ideia de amnésia social para tentar explicar os apagamentos destas personagens no processo de consolidação da arquitetura e urbanismo no Brasil. Vou da década de 1910, década da matrícula da primeira mulher no curso de arquitetura, até a década de 1960, pois, conforme a historiografia amplamente nos coloca, na década de 1970 já podemos observar uma entrada ampla de mulheres nos cursos superiores, incluindo a arquitetura. Portanto, me interessa o momento anterior a este crescimento mais expressivo do número de mulheres nas graduações.
- O que te motivou a pesquisar sobre o tema?
Minha principal motivação foi o diálogo com as estudantes em sala de aula. Quando eu dava aula no curso de arquitetura e urbanismo era muito comum a seguinte questão: Professora, não existem mulheres na história da arquitetura? Daí, eu buscava estas mulheres em referências bibliográficas, sites e encontrava muita coisa produzida nos Estados Unidos e Europa, principalmente. Levava para sala de aula, inseria nos conteúdos, apresentava em eventos, mas outra pergunta ficava no ar: e as mulheres na história da arquitetura no Brasil? Para essa resposta, eu conseguia encontrar bastante dados sobre Lina Bo Bardi e Carmen Portinho, que se inseria nas discussões por ser formadas em urbanismo, além da engenharia, também por sua rede de relações, projetos e ideias. Diante deste desafio, resolvi então partir para as fontes primárias e encontrar nomes.
À medida que foram aparecendo, o que chamo de um processo de desinvisibilização, observei que tinha de produzir algo sobre elas, apresentar elas para o “mundo” afirmando que sim, elas fizeram parte do processo de consolidação da arquitetura e urbanismo no Brasil, que é uma das minhas hipóteses de trabalho. E hoje fico muito feliz porque pude construir a resposta para tantas estudantes presentes nos cursos de arquitetura e urbanismo no Brasil.
- Qual a relevância da(s) arquiteta(s) pesquisada(s) para a historiografia da Arquitetura e do Urbanismo?
Acho que o primeiro aspecto relevante é que podermos saber que esta história não foi construída apenas por figuras masculinas, como as narrativas oficiais demonstram em grande parte. Isso demarca o lugar da mulher na construção da arquitetura e urbanismo enquanto saber teórico, técnico e prático. E, para mim, traz à tona dois elementos. Primeiro é que eu acredito que só poderemos enxergar mulheres e outros agentes com suas identidades, pretas, pretos, LGBTQIA+, por exemplo, se observamos que a arquitetura é um exercício coletivo no sentido prático e da troca de ideias. Isso pode ampliar nossa lente para enxergar outros agentes históricos. O parâmetro do “gênio”, “mestre” ou “star architect” ofusca tanto as relações quantos os sujeitos envolvidos na constituição de projetos e saberes.
O segundo aspecto é o da representatividade e da maneira como o passado é mais presente do que imaginamos. Eu vejo, e as sucessivas pesquisas do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU Brasil) demonstram que as desigualdades de gênero se desenham de diferentes formas no campo da arquitetura e urbanismo em termos de ganhos e reconhecimento, por exemplo. Nas salas de aula também. Falamos de muitos exemplos masculinos para um público feminino, em grande parte. Nossas estudantes não se enxergam na história da profissão que escolheram. Então acho que historicizar as mulheres na arquitetura e urbanismo é demonstrar a persistência de determinados parâmetros de desigualdade e auxiliar na construção da confiança coletiva das futuras profissionais e na conscientização de todes com relação a atuação da mulher. É um exercício que auxilia na naturalização da presença da mulher com equidade e não através de um olhar sexista. Isto é, a história nos ajuda a descortinar as desigualdades e identificar atitudes do presente que reforçam estas estruturas hierárquicas.
- Comente as dificuldades e/ou especificidades enfrentadas pela(s) arquiteta(s) pesquisada(s) no exercício profissional relacionadas ao fato de ser(em) mulher(es)?
A primeira dificuldade é com relação à historiografia porque, numa pesquisa histórica, é importante fazer uma revisão sobre o tema e, como já coloquei, não encontrei muitos dados. A segunda dificuldade diz respeito a parte prática da pesquisa que é a investigação em arquivos e fontes. Também sobre este aspecto falam muito alto as hierarquias fundamentadas no gênero.
Que memórias queremos guardar? Segundo Michelle Perrot, a seleção do que se guarda e se descarta sobre o que se produz ao longo da vida é uma decisão que se inicia até dentro do ambiente doméstico. E nestes casos, a memória feminina é quase sempre mais apagada que as masculinas. E, depois, nas instituições, há um interesse maior para resguardar documentos relativos aqueles considerados líderes ou mais importantes. Mais uma vez as mulheres correm o risco de ficar de fora por ocuparem menos estes cargos. São muitos casos em que a memória que se privilegia e se busca perpetuar são as dos homens. Mulheres dificilmente dão nome para arquivos, eu costumo dizer. Por isso a pesquisa histórica sobre elas é mais árdua, digamos.
É necessário fazer conexões entre pessoas, instituições e usar a criatividade para interpretar fontes por vezes escassas em quantidade. Então, necessariamente, eu trato tanto do objeto quanto dessa relação que temos com a memória, uma amnésia social que se inicia no momento que selecionamos o que fica e o que vai embora do que se produz. Esse processo está também sob o uma lógica dos gêneros e do patriarcado. Outra dificuldade está relacionada à importância da pesquisa. À medida que fui encontrando, e ainda encontro dados, fui acreditando na importância deles e como a historiografia e campo da arquitetura e urbanismo poderiam se beneficiar com estas informações.
Eu literalmente busquei muitas pessoas e entidades para falar sobre o reconhecimento da Arinda e da capela, por exemplo. Em alguns casos não houve interesse. Considero este ponto fundamental para tentar demonstrar como o reconhecimento das mulheres na arquitetura ainda é difícil e o quanto muitos agentes contemporâneos não sentem o peso das estruturas desiguais de gênero.
Por último, destaco que é muito comum algumas exigências que também estão relacionadas a maneira como viemos construindo a história da arquitetura e urbanismo, conforme destacam as pesquisadoras Beatriz Colomina e Despina Stratigakos. Sempre me questionam sobre algo que aponta uma tentativa de enxergar o “brilhantismo” ou “excepcionalidade” das arquitetas que pesquiso. E eu digo que não há excepcionalidade ou que pelo menos não é isso que busco. A história não trata de sujeitos “além do tempo”, até porque estes não existem, todes estão no seu tempo e a grandiosidade é um valor que damos a partir de padrões. Meu compromisso é trazer as mulheres na arquitetura e urbanismo à tona, demonstrando sua presença e trajetórias como tantas outras mulheres que atuam hoje na luta coletiva através de entidades como o CAU Brasil, por exemplo. Algumas arquitetas que encontrei se envolveram em movimentos sociais, inclusive. Acredito que só pelo fato de Arinda ter se matriculado em um curso de arquitetura, em 1907, já diz muito para nós sobre a trajetória de lutas e conquistas das arquitetas e urbanistas e que certamente a presença dela não só contribuiu, mas já começou a alterar estruturas presentes no passado.
- Indique link(s) ou arquivo(s) para demais informações sobre a sua pesquisa, ou artigos publicados relacionados ao tema (podendo incluir referências bibliográficas de outras autorias).
Estou com dois artigos aprovados aguardando a publicação. Eles tratam da pesquisa, mas gostaria de indicar trabalhos e nomes que considero importantes para compreensão do tema que, pelo que vejo em eventos, vem numa crescente. São eles: os trabalhos de Suzane Torres, Gwendolyn Wright e Doris Cole, consideradas pioneiras na história da mulher da arquitetura nos Estados Unidos. Também indico Sarah Allaback, Francesca Hughes e outras com produções mais recentes facilmente encontradas. Tenho um trabalho publicado sobre a historiografia americana. Clique aqui.
Foi por onde comecei e indico estas referências porque desde os anos 1970 existem pesquisas sobre o tema da mulher na arquitetura e urbanismo nos Estados Unidos. Temos trabalhos de arquitetas e urbanistas na América Latina, como os de José Carlos Huapaya Espinoza. Acesse o trabalho de Espinoza.
Clique e saiba mais sobre urbanismo feminino na América.
E, ainda, Ana Gabriela Godinho: Arquitetas e arquiteturas na América Latina do século XX. Saiba mais.
Também posso indicar os trabalhos desenvolvidos por Silvana Rubino sobre as trajetórias profissionais da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, que atuou no Brasil, e da designer francesa Charlotte Perriand. Clique aqui.
E Flávia Brito do Nascimento que investigou a vida profissional da engenheira e urbanista Carmen Portinho e de sua luta pela implementação de um programa habitacional popular na cidade do Rio de Janeiro. Leia mais.
Por fim, indico a participação em eventos. Já vi trabalhos sobre arquitetas e urbanistas em Pernambuco, Bahia, Minas, Distrito Federal, entre outras localidades. Indico aqui, por exemplo, as pesquisas da professora Andrea Gáti. Saiba mais.