A cada edição, a Conferência das Partes (COP) sobre mudanças climáticas tem ampliado a participação de estados, municípios e outras lideranças subnacionais. Sergio Myssior, fundador e presidente do Instituto Bem Ambiental (IBAM), que já participou de várias COPs, compartilhou suas impressões sobre a COP 29, realizada em Baku, no Azerbaijão, destacando como os temas de arquitetura e urbanismo estão se tornando centrais para o debate global.
Na entrevista exclusiva ao Perspectiva CAU, ele aborda as principais discussões da conferência, como os quatro grandes eixos das COPs — mitigação, adaptação, financiamento e perdas e danos — e o papel crucial que as cidades desempenham na adaptação às mudanças climáticas. Sérgio também reflete sobre o impacto das desigualdades urbanas no Brasil e como a mobilidade urbana, a habitação e o uso do solo podem ser estratégias integradas para construir cidades mais resilientes e sustentáveis.
Além disso, Myssior, membro do Conselho Editorial da Revista Ecológico e ex-conselheiro titular do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU/MG), discute a importância da integração entre a Nova Agenda Urbana e a Agenda Climática, a crescente participação das lideranças locais nos eventos globais e a relevância da COP 30, que será realizada em Belém, para o Brasil e a Amazônia.
Confira os principais pontos da conversa e as estratégias propostas para alinhar o planejamento urbano às metas climáticas globais.
Perspectiva CAU: Conte um pouco da sua experiência na COP 29. Como o tema da Arquitetura e Urbanismo estava presente no evento? O que já era esperado e o que te surpreendeu?
Sergio Myssior: Eu já venho participando das últimas COPs. Eu me recordo muito bem da COP 27, que foi no Egito; da COP 28, que foi em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, e, agora, a COP 29 em Baku, capital do Azerbaijão. O tema da arquitetura e do urbanismo, especificamente em relação a cidades, tem crescido muito e ganhado muita potência nas últimas COPs, principalmente liderado pelo que nós chamamos de governos subnacionais, ou seja, estados e, principalmente, municípios. Nós temos quatro grandes eixos que são discutidos na COP: tema da Mitigação dos gases de efeito estufa, que se trata da eliminação dos emissores de gases, da substituição de fontes sujas por fontes limpas, renováveis e também de novas tecnologias e uma novíssima economia que tem aparecido a partir dessas COPs. Isso está dentro do eixo da mitigação e dialoga com a questão de conter o aquecimento global a 1,5º em relação aos níveis pré-industriais. Esse é um eixo muito forte e tem mobilizado, até então, a maior atenção e os maiores recursos. Mas um segundo eixo começa a se destacar nos últimos encontros, que é o chamado Adaptação às mudanças climáticas. Eu acredito que ele esteja diretamente relacionado à arquitetura e urbanismo, tendo em vista que a maior parte do mundo já está vivendo nas cidades. No Brasil, nós já passamos de 84% de pessoas vivendo na cidade. As cidades já vivenciam, no seu cotidiano, tantos resultados das mudanças climáticas, o que se traduz em eventos extremos que vão resultar em aumento de inundações, deslizamentos de terra, vetores de doenças, ilhas de calor. A cidade já precisa realizar um esforço tremendo para se adaptar a esse novo cenário determinado pelas mudanças climáticas, como o Rio Grande do Sul, exemplo de uma tragédia muito grande e recente. Mas a gente pode perceber, em outras cidades e regiões, como esses eventos, cada vez mais fortes, extremos e frequentes, têm determinado impactos com a perda de vidas e na economia e meio ambiente. Então a cidade tem, ao mesmo tempo, necessidade de se adaptar e uma incrível capacidade também de se adequar a esse novo cenário. Aí entram os instrumentos e as ferramentas, principalmente urbanísticas, fazendo com que o portfólio de soluções urbanas possa dialogar com essa agenda das mudanças climáticas.
No Brasil, nós temos uma carência de infraestrutura muito grande. O tema habitacional é um tema chave quando a gente pensa em adaptação das cidades, assim como as questões também da desigualdade social que se abatem sobre o tecido urbano. Esse tema de arquitetura e urbanismo tem realmente crescido a cada período e esse movimento de prefeitos, entidades e lideranças tem sido uma voz cada vez mais presente no mundo inteiro. Embora, em relação às conferências das partes, os estados e os municípios, a princípio, não sejam essas partes, eles estão cada vez mais presentes. No dia 20 de novembro tivemos um momento emblemático dessa participação, em que foi realizada essa terceira reunião ministerial de urbanização e mudanças climáticas, ou seja, justamente esse movimento de comunidades locais, de municípios e esse movimento regional e local, os quais passam a ter voz e espaço dentro da COP, colocando, de forma muito nítida, o tema de urbanismo integrado ao tema de mudanças climáticas. Esse, inclusive, foi um dos resultados da reunião do dia 20 de novembro. Eles estabeleceram que essas duas agendas, a Nova Agenda Urbana com a Agenda da Mudança Climática, devem caminhar de forma integrada, porque são agendas transversais e convergentes em relação aos desafios e aos caminhos das soluções.
Há uma outra questão, agora falando da arquitetura, que também ganha cada vez mais tração nessas COPs. Nós temos que considerar também fazer esse recorte das cidades. Embora, no Brasil, o inventário de gases de efeito estufa indique que a maior contribuição nas emissões ainda está no campo do desmatamento e do uso da terra, quando olhamos o recorte da cidade, onde o maior número de pessoas vive, nós temos que a maior contribuição vem do setor de transporte. Percebemos a qualidade do ar nas nossas cidades e a qualidade de vida. A mobilidade urbana pode ser um meio com menor níveis de emissão, mas ela também é um meio fundamental para que possamos exercer as nossas necessidades e os nossos direitos cotidianos. Sem uma boa mobilidade, não conseguimos acessar as oportunidades de trabalho e renda, o estudo, a saúde, a cultura. A mobilidade tem um papel chave dentro dessa equação de cidades cada vez melhores, tanto o papel em relação à redução das emissões de gás de efeito estufa – e aí não se trata só de substituir um motor a combustão por um motor elétrico não poluente, por exemplo -, mas a mobilidade também é associada à questão do uso de ocupação do solo para que tenhamos maior diversidade de uso e maior diversidade de rendas, porque as pessoas com menor renda vivem cada vez mais distantes das oportunidades. A mobilidade passa a ter também uma importância muito grande nesse reordenamento para uma nova agenda urbana e para uma agenda climática aí integrada.
Perspectiva CAU: Que papel a arquitetura e o urbanismo podem desempenhar na adaptação e resiliência urbana?
Sergio Myssior: A resiliência vai ser a capacidade da cidade e das comunidades lidarem com esses eventos extremos com os menores impactos possíveis, retomando a normalidade, de forma menos dramática, mais rápida, mais econômica e mais eficiente. A gente pode e deve, sim, utilizar essas ferramentas da arquitetura e urbanismo. E aí estamos falando de ingressar com ações mais ligadas a essa infraestrutura verde, em detrimento da infraestrutura cinza. É claro que não vai substituir tudo, mas ela vai também trazer essa nova orientação da cidade. Estamos falando de arborização urbana, de corredores ecológicos, de parques lineares, de promoções diárias mais permeáveis de soluções, de soluções baseadas na natureza, como jardins de chuva, jardins filtrantes, ou seja, uma série de tecnologias no campo mais natural que vão trazer esse equilíbrio entre o desenvolvimento urbano e a sustentabilidade. Percebemos que isso vai tanto na escala urbana, quanto na escala de edificação. Ela pode ter uma série de soluções, desde uma energia solar fotovoltaica, soluções tecnológicas para maior eficiência e baixa o consumo.
Temos também soluções que não são nem onerosas no campo da regulação. Quando pensamos numa cidade que tem fachadas ativas, o uso é um uso múltiplo, em que você não tem só uma habitação ou só um comércio, mas consegue conciliar diferentes usos e segmentos sociais. Consegue ter ruas mais vivas, na medida em que tem ruas mais vivas, tem uma cidade com mais vitalidade e mais segurança, com uma economia que aflora. É a cidade também como plataforma não só para o desenvolvimento sustentável, mas, principalmente, como uma plataforma de novas conexões, inovações empreendedorismo e inclusão. Esse também é um destaque para a relação das COPs. A temática da Participação e da inclusão tem sido muito presente e dialoga muito com a nossa agenda urbana. Então estamos falando de justiça climática. Isso caminha concomitante com o tema das agendas climáticas. Não se trata só de adaptar, mas fazer desse novo paradigma, dessa nova economia verde, limpa e sustentável e dessa transição para as cidades de baixo carbono, uma oportunidade para incluir pessoas, reduzir as desigualdades sociais e, principalmente, oferecer maiores e melhores oportunidades para quem mais precisa.
Perspectiva CAU: Que estratégias poderiam ser prioritárias para garantir maior resiliência urbana e equidade social?
Sergio Myssior: As edificações, porque elas são não só a questão da eficiência em si. Estamos falando da eficiência no uso de recursos hídricos, de energia na gestão de resíduos, que é um tema chave nas cidades, visto que a disposição inadequada tem gerado um acréscimo do metano, que é um gás extremamente poluente e tóxico. Se bem trabalhada, a gestão integrada dos resíduos pode ser não só um ativo para geração de emprego de renda de oportunidades, de reintroduzir uma série de insumos na nossa cadeia de produção, mas também pode ser uma fonte de energia, na medida em que você trabalha todos esses temas. Percebemos a educação tanto ambiental quanto a educação urbana entrando nesse tema. As edificações têm um papel também de contribuir com essa nova infraestrutura verde que vem substituindo a infraestrutura cinza das cidades. Estamos falando de soluções baseadas na natureza, sobre projetos que podem conservar áreas verdes e áreas para recarga dos aquíferos, para aumentar a infiltração em terreno natural, proporcionar também telhados verdes, arborização urbana, materiais que tenham origem a partir de um manejo e possam também ter proximidade com fornecedores locais.
A edificação tem um papel muito grande, até porque grande parte da energia das cidades é consumida nas próprias edificações, seja na produção dos insumos para as edificações quando na própria operação na vida útil, durante todo o ciclo de vida dessas edificações. A arquitetura e urbanismo tem um papel estratégico quando a gente pensa numa nova economia, num novo paradigma de uma sociedade de baixo carbono. A arquitetura e urbanismo tem esse papel estratégico de ajudar nessa reorientação integrando essas agendas. Por conta do próprio Estatuto da Cidade e de experiências em outros países, percebemos que nós temos um conjunto de ferramentas e instrumentos no campo urbano ambiental e de sustentabilidade que podem apoiar, tanto do ponto de vista das ações, quanto até mesmo do financiamento. Temos diversos instrumentos que vão ajudar na preservação do patrimônio, do meio ambiente, que vão financiar a infraestrutura, seja por meio de uma outorga onerosa. Temos todo esse ferramental que pode e deve ser usado e orientado por essa nova agenda integrada entre a urbanização e mudanças climáticas.
Perspectiva CAU: Como o CAU/BR poderia contribuir para integrar a agenda climática ao planejamento urbano sustentável?
Sergio Myssior: O nosso Conselho de Arquitetura e Urbanismo é uma autarquia federal e tem justamente, na minha visão, esses objetivos e esses valores. Primeiro, é poder influenciar positivamente para que a nossa sociedade entenda o valor e a importância da arquitetura e do urbanismo para o seu cotidiano e, principalmente, que a sociedade tenha acesso a uma boa arquitetura e um bom urbanismo, seja em relação às áreas de menor poder aquisitivo. Para citar um exemplo, a Fundação João Pinheiro publicou um levantamento que indicou que mais de 41% de todos os domicílios brasileiros estão numa condição de inadequação, ou seja, inadequação em relação à infraestrutura do entorno ou em relação à inadequação da própria edificação.
Portanto, para além da produção de habitação de interesse social, que é muito importante, da oferta de programas e políticas no campo da habitação de interesse social, temos que pensar também que precisamos é melhorar, adequar esses domicílios que já existem, seja melhorando a infraestrutura do entorno ou qualificando a edificação propriamente dita, levando a melhor e o maior volume de recursos para quem mais precisa. A arquitetura e urbanismo vão oferecer condições para reduzir a vulnerabilidade dessas comunidades, as mudanças climáticas, porque embora as mudanças climáticas possam atingir toda a sociedade, aquelas populações que estão numa condição de maior vulnerabilidade são exatamente as mesmas comunidades que estarão em alta vulnerabilidade em relação às mudanças climáticas. Hoje, elas já convivem com deslizamento de terra, com ilhas de calor, com vetores de doença, com inundações, com a questão da deficiência do saneamento.
O CAU/BR, como autarquia, tem esse papel de oferecer para a comunidade um portfólio de alternativas de opções que a arquitetura e urbanismo. Pode ser também um vetor para a melhoria desse letramento Urbano. O CAU/BR pode ser esse veículo, para que esse letramento, dessa pedagogia urbana, possa estar inserido no cotidiano das pessoas para que elas possam também trabalhar dentro desse repertório.
Perspectiva CAU: O que a realização da COP-30, em Belém, pode significar para a Amazônia e para o Brasil?
Sergio Myssior: Em relação à COP 30, há uma grande expectativa. Primeiro, porque o Brasil assume um protagonismo mundial em relação a essa Agenda da Sustentabilidade, da Biodiversidade, das Mudanças Climáticas. O Brasil é o país com a maior biodiversidade do planeta e, neste sentido, a realização da COP região Amazônica, em Belém (PA) apresenta esse desafio de conciliar os 30 milhões de habitantes da região Amazônia com a questão da preservação ambiental, o desenvolvimento de uma bioeconomia.
A Amazônia acaba sendo uma espécie de exercício para mostrar que essa novíssima economia pode e deve ser desenvolvida considerando todas essas variáveis. Temos várias partes interessadas, vários stakeholders, uma população muito relevante de 30 milhões de pessoas, uma floresta que representa a maior biodiversidade do planeta, uma área que sofre de forma muito significativa com o desmatamento, com a ocupação ilegal com a grilagem. Além disso, há uma questão de uma bioeconomia, ou seja, não vai condenar o Brasil e essa região a não se desenvolver. Mas é possível sim se desenvolver de forma mais sustentável, estabelecendo novos modelos e, principalmente, novos parâmetros que vão dialogar com essa economia de baixo carbono.
Neste sentido, não é a qual, mas a COP da Amazônia, porque a COP continua sendo um encontro global dos quase 200 países e diversas outras partes interessadas que vão se estabelecer nesse momento. Na verdade, ela já começou, porque, neste ano, já foi estabelecido o que ele chamou de troika, que reuniu o presidente da COP anterior, que foi realizada nos Emirados Árabes, o presidente da COP atual (Azerbaijão) e o presidente da próxima COP, que será no Brasil. Os três países já estão unidos para garantir uma agenda ambiciosa e potente, que vai culminar nesse grande encontro no ano que vem.
Os países têm até fevereiro de 2025 para entregar as suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), as suas contribuições nacionalmente determinadas. O Brasil já saiu na frente, como o país a entregar durante a COP 29. A NDC do Brasil é muito interessante. Além de oferecer uma faixa entre 59 e 67% de redução nas emissões de gás até 2035, ela traz uma série de ações no campo ambiental social e econômico. Ela inova em diversos pontos, por exemplo: traz o conceito do federalismo climático, em que há sim uma união “multinível” (municípios estados e federação). Traz também um pacto federativo que vai trabalhar de forma concomitante, que vai envolver os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Já há um arranjo que é multisetorial e multinível para enfrentar um tema que é transversal. Introduz também o conceito da Justiça climática. As pautas que foram discutidas no G 20 estão sob esse guarda-chuva da agenda climática, como a urbanização integrada com o tema da agenda climática.
O ponto que eu destacaria, que dialoga bastante com arquitetura urbanismo, é o tema da Adaptação. Até então, esses documentos eram muito ligados às metas de redução e eliminação dos combustíveis fósseis e redução dos gases de efeito estufa. O documento do Brasil, assim como de outros países, traz esse recorte que determina uma atenção especial para a adaptação das mudanças climáticas, adaptação das cidades, adaptação dessa nova economia, do urbanismo, da arquitetura. É um tema que vem junto do financiamento climático. É uma questão muito importante. Os países vão precisar de recursos, principalmente os países em desenvolvimento, para enfrentar esse desafio. Nós temos desafios que já estão definidos em que é necessário o aumento desse recurso, além de engrenagens mais rápidas e necessárias para que as ações sejam implementadas.
A COP 30 tem essa série de expectativas. Primeiro, porque coloca a centralidade no Sul Global, que é um movimento que vem crescendo. Hoje, temos o G77+China, que tem liderado o movimento. Outro ponto é que a COP será realizada no país de maior diversidade do planeta. O terceiro ponto é que vem acompanhada da posterior entrega das NDCs por todos os países. Teremos um balanço a respeito da ambição das metas e dos recursos. A COP também acrescenta a possibilidade de o Brasil assumir um protagonismo, naturalmente junto com outros países, principalmente China. Reino Unido, além da União Europeia e Mercosul. A arquitetura e urbanismo é um veículo extremamente importante para contribuir com essa agenda.