Jussara Derenji é arquiteta e urbanista, pela FAURS, paisagista pela FAUSP e mestre em História, pela PUCRS.
Um ambiente saudável, uma moradia com qualidade e acesso a água potável, a serviços de esgoto, a iluminação e a áreas de lazer, deveriam ser inerentes ao entendimento do direito à moradia, assegurado por lei em nosso pais. A Constituição de 1988 diz que é competência da União, dos estados e dos municípios e a eles caberiam “promover programas de construção de moradias e melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico” no meio urbano. Essas metas fazem parte desde 2000, por emenda constitucional, do rol dos direitos civis dos cidadãos brasileiros.
Apesar disso, o que foi feito pelos órgãos responsáveis pela habitação popular destinada a pessoas de baixa renda e pelo atual programa, denominado Minha Casa, Minha Vida (MCMV), foram empreendimentos genericamente situados em áreas afastadas, com dificuldade de acesso e de serviços, tornando o deslocamento difícil ao trabalho, a escolas e a serviços de saúde. Uma das mais flagrantes falhas do sistema seria, na maioria desses empreendimentos, a ausência de tratamento paisagístico, de áreas de vegetação/preservação e das destinadas ao lazer e convivência. Outra questão importante a ser ressaltada é a adoção de uma padronização quase total de projetos, seja de residências isoladas ou conjuntos de apartamentos, sem adequar-se à diversidade climatica do extenso território nacional.
Recentemente, 5 de junho de 2024, foi decretado pela Presidência da República o Programa Cidades Verdes e Resilientes (PCVR), cujos artigos terceiro e quarto apresentam uma longa lista de objetivos a alcançar na ocupação das cidades. Vamos citar alguns deles:
Art. 3º – Uso e ocupação sustentável do solo, áreas verdes e arborização urbana, mobilidade urbana sustentável, gestão de resíduos,
Art. 4º – Articulação institucional, orientações técnicas e normativas, elaboração de planos, projetos e intervenções, educação urbano ambiental.
Como se percebe de imediato os programas institucionais, atuais ou em execução, ainda estão longe de alcançar esses objetivos, além de não considerarem, como já foi comentado, de forma adequada, as diferenças climáticas.
Dentre as medidas em curso visando atuar em prol da paisagem e qualidade de vida, especialmente no meio urbano, está em tramitação um projeto de lei criando parâmetros para alteração da paisagem. Tramita no Congresso Nacional, elaborado por 40 pesquisadores, por proposta de órgãos ligados ao paisagismo e meio ambiente, um projeto que visa estabelecer parâmetros para a proteção ambiental, prevenção e precaução no uso do solo urbano e rural.
A análise da influência dos parâmetros citados para cumprir o prescrito pela legislação em relação ao direito à moradia, pode mostrar os efeitos nas estruturas familiares, na sociabilidade, na evasão escolar, em demanda acentuada e concentrada de serviços de saúde e outros, nas áreas centrais das cidades.
Esse lado a ser desenvolvido nos projetos governamentais, de qualidade da habitação, do entorno e de seus acessos aos serviços essenciais não exime os setores responsáveis de ações efetivas, planejadas, sobre a ocupação ilegal de áreas de risco à população, como encostas e áreas alagáveis assuntos que, teoricamente, deveriam ser abrangidos pelo decreto de 5 de junho do ano atual.
Na verdade, enfatizados, porque a legislação atual já prevê esses impedimentos à construção. Tivemos recentemente no Brasil uma sequência de desastres “naturais”, cheias, enchentes, deslizamentos e alagamentos com consequências extremamente graves. São frequentes, mas são também previsíveis. Se as associarmos a ocupação indevida e sem controle dos órgãos de fiscalização, é possível afirmar que muitas dessas tragédias ambientais ocorrem, não por acaso, seja o deslizamento de um morro, seja o transbordamento de um rio, marés altas ou secas prolongadas, mas são previsíveis assim como suas consequências.
Estão muito próximas, ainda que quase esquecidas, as mudanças ocorridas no ambiente familiar durante a pandemia de Covid, quando a população foi confrontada com a necessidade de permanecer nos mesmos ambientes por longos períodos e nas consequências desse confinamento forçado nas relações familiares e na arquitetura residencial.
Foi um período excepcional que necessariamente iria acabar. O que se traz agora à analise são as consequências perenes causadas pelas moradias inadequadas, aquelas de implantação com critério equivocado, ainda que planejadas por órgãos governamentais, mas, também do seu inverso, a permissão ou negligencia perante as ocupações indevidas, em áreas de risco, ilegais e desprovidas das mínimas condições de habitabilidade levando a tragédias ambientais, perda de vidas e de bens pela população.
A prevenção de tragédias naturais, em escala mundial, planetária, foge ao alcance humano. Nada podemos sobre a trajetória ou intensidade do El Niño ou Niña, tufões de todos as denominações ou outras atividades extremas como tsunamis ou terremotos. Mas, certamente, deveríamos poder evitar a ocupação de áreas sujeitas a deslizamentos, inundações e outros possíveis, frequentes e previsíveis desastres.
As margens de rios precisam ser preservadas, assim como as encostas e outros locais de risco continuado e conhecido. O Direito à Moradia, previsto pela constituição brasileira, não deve ter, como muitas vezes ocorreu em programas já executados, a interpretação rasa de um teto mínimo, num local distante, sem cobertura vegetal e áreas de convívio. A necessidade de obter um local de moradia não pode, por outro lado, ser um incentivo a permissividade do governo a ocupação de áreas de risco, florestadas “de mato”, ou margens de rios, como se observa de forma continuada.
O programa habitacional é nacional e o projeto das residências, sejam casas ou prédios de apartamentos, não considera as especificidades regionais.
Não parece ter sido sanada, mas ainda pode estimulada a correção de uma das principais falhas do sistema que é a uniformização de projetos das residências, isoladas ou em edificações compartilhadas, para todo o território nacional. Tendo dimensões continentais, o Brasil tem regiões de climas totalmente diferentes nas diversas fases do ano, zonas equatoriais e tropicais.
O país ocupa aéreas que vão do Equador. Macapá, no estado do Amapá, é cortada pela Linha, até o extremo sul, em áreas de frio intenso no inverno (que não existe para a zona equatorial). O projeto padrão, no entanto, não considera essa diferença climática. A ausência de sombreamento é a causa do aumento de temperaturas nas residências durante todo o ano na Região Norte, local onde se situa Belém, Nordeste e no verão sulista. Belém hoje é a cidade com menor índice de arborização entre as capitais brasileiras, sendo situada na região mais quente. Estudo de especialistas, professores Candido Ferreira Neto e Joze Melissa, comprova que a cidade precisa de mais arborização, o que poderia trazer diminuição de temperatura e maior interação social.
Outra problemática a ser enfrentada é a distância e acessibilidade dos novos núcleos habitacionais a serviços e trabalho, o que pode acarretar em aumento da desocupação, evasão escolar e desajustes familiares.
Uma alternativa, que seria a ocupação de áreas urbanas, especialmente centrais, para projetos habitacionais de baixa renda, apresenta, sem dúvida, obstáculos operacionais e institucionais. Seriam necessárias a desapropriação e reforma do espaço físico ou construção de prédios em áreas originalmente de propriedade privada.
No entanto essa opção oferece inúmeras vantagens como diminuição de período de deslocamento dos usuários, reocupação de áreas abandonadas ou degradadas, especialmente nos centros históricos. Recentemente tivemos em Belém dois exemplos de prédios abandonados, há décadas na área central, ambos tendo sofrido incêndios. Um será transformado em hotel de cadeia internacional, pela localização privilegiada, e o outro, com abandono de mais de 30 anos, será reaproveitado para abrigar diversos órgãos públicos.
Essas questões remetem ao reverso do problema habitacional na periferia que é relacionado com o esvaziamento de áreas centrais, a desocupação de prédios, especialmente em áreas centrais ou portuárias. A recuperação dessas áreas para fins habitacionais, integrando camadas deficientes em moradias e dando facilidade de acesso a áreas eventualmente abandonadas, poderia diminuir a pressão para ocupação de áreas de risco, integrar camadas da população e aproxima-las do trabalho, de serviços de educação, cultura, lazer e saúde.
Considerando o destaque que está sendo dado à cidade Belém do Pará pelo próximo encontro COP, que será realizado em breve, é importante que se faça esse tipo de reflexão sobre a situação dos programas e ações governamentais (ou falta delas), que incidam sobre o assunto em pauta.
Dados básicos
Pará 1.253.000 quilômetros quadrados, 144 cidades.
Comparado a um pais europeu como a Itália, com 301.073 km², 8090 cidades.
Cidade de Belém: 1.370.000 habitantes em 2022, decrescendo 6,5% desde 2020. Situada a 2 graus do Equador, com 1.059 km².
O IDH é 0,746, o maior do estado.
Zona metropolitana 1.740.000 habitantes. Nessa zona, total incluindo ilhas, existem 578.000 km² de áreas verdes, mais áreas verdes do que a Itália inteira. No entanto, Belém não fica no ranking das 10 cidades mais arborizadas do pais. Inversamente, Belém (PA) como Manaus (AM), a outra grande cidade na Amazônia brasileira, são as cidades com menor percentual de arborização urbana entre as 15 cidades brasileiras com mais de um milhão de habitantes, segundo dados do IBGE. Em Belém, só 22% dos domicílios têm alguma árvore ao seu redor. Já Goiânia, com 1.437.237 moradores tem 89% dos domicílios com árvores em seu entorno. Não foram computadas árvores no interior dos lotes.
Temperatura média de 33º, com umidade relativa de 92%. Bairro de Fátima alcança temperaturas de 40º e 44º, enquanto o Marco fica em 29º, mostrando claramente a diferença entre um bairro com parques e outro sem presença de árvores.
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