Neste artigo publicado no Diário do Rio, a conselheira do CAU/BR Leila Marques (RJ) aborda como as favelas da cidade foram rebatizadas ao longo dos anos, de acordo com ideologias e modismos políticos de cada época. O IBGE, após 50 anos, retomou o termo favela em seus trabalhos censitários e outras publicações*
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Depois de mais de 50 anos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) volta a usar em seus trabalhos censitários e outras publicações, a denominação “favelas”, incluindo o complemento “comunidades urbanas” na classificação de determinados espaços edificados que reconhecemos com muita facilidade na paisagem da cidade do Rio, embora esteja longe de ser uma exclusividade carioca.
O nome volta a ser usado após ter sido rebatizado, precisamente em 1991, como “aglomerados subnormais” – expressão explicitamente pejorativa que levava a crer que houvesse supressão da capacidade dos moradores em construir ou habitar de forma “normal”, quando o “subnormal”, na verdade, é o abandono ao qual vários governos submeteram essa parte significativa da população.
Nesse período, em que o termo “favela” foi considerado politicamente incorreto, surgiu a expressão “comunidade carente”, que, sempre quando citada, era acompanhada de uma expressão de desconforto do orador que percebia que a tentativa de se remover à força um substantivo, já derivado em adjetivo, advérbio e verbo, jamais funcionaria com o mesmo vigor na nossa língua.
Essa troca de nomes que, talvez para alguns, possa parecer uma simples questão vernacular, tem uma relevância muito maior no cenário político, consequentemente no social e no econômico. As expressões utilizadas para se referir aos territórios de favela nas cidades, e o próprio resgate desse substantivo, usado inicialmente pelo IBGE em 1950, revela a identidade de um povo, e como, em cada período histórico do nosso país, esses espaços foram sendo reconhecidos.
A origem da expressão “favela” provém da agreste cidadela de Canudos (BA), construída junto ao “Morro da Favela”, assim batizado em virtude da planta favela, Cnidoscolus quercifolius, que o encobria. A tropa que ali lutou contra os “rebeldes” que desejavam liberdade do coronelismo da região, posse de terra e melhores condições de vida, ao retornar ao Rio de Janeiro em 1897, sem trabalho e sem soldo, diante da impossibilidade de aquisição de algum tipo de imóvel regular, numa batalha, dessa vez pela sua própria sobrevivência, se instalaram junto a outras construções “provisórias”, onde ex-escravizados e imigrantes igualmente desempregados já haviam iniciado a ocupação, sobre o Morro da Providência – que acabou sendo reconhecida como a primeira favela do Brasil.
O local passou então a ser designado popularmente também como “Morro da Favela”, em referência ao local de onde os tropeiros vieram. Em pouco tempo, a expressão “favela”, destacada do acidente geográfico “morro”, passou a designar a própria tipologia desses aglomerados de edificações precárias, que se espalharam pela cidade, erguidos à margem da sua estrutura socio, econômica e urbana.
O rápido crescimento das favelas, destoante do discurso de desenvolvimento que a nova república queria oferecer, tornou-se um problema grave, cujas “soluções”, inicialmente apontadas, eram a de remoção ou mesmo a de erradicação – por serem consideradas “doenças da cidade”, no sentido visual e até literal.
A evolução do conceito oficial de favela, que, nos anos 60, era atribuído ao “agrupamento formado por mais de 50 unidades habitacionais, em geral barracos, ou casebres de aspecto rústico, construído com material inadequado, sem licença, sem fiscalização, sem serviços públicos” (IBGE), passa por uma readequação nos anos 80 quando agrega-se o valor “localizadas em terrenos não pertencentes aos moradores”– ocasião em que a questão fundiária passa a balizar também o termo que as define, e quando alguns movimentos de urbanização desses espaços despontaram no cenário nacional.
A mudança do nome “favela”, vegetal nativo do morro-residência de gente humilde, trabalhadora, desassistida socialmente, para “aglomerados subnormais” nos anos 90, foi uma ação que contribuiu para fixar na população a ideia negativa dessa periferia e finalizar com qualquer resquício da ideia romantizada da “lata d’água na cabeça”, como desenhada na letra da música de Candeias Junior, e justificar seu abandono político.
As alterações de nomenclatura ao longo do tempo, tal como o atual retorno à expressão do início do século, em verdade, não representam outra definição geográfica senão a que já conhecemos, de acordo com o IBGE. Ou seja, a “nova-antiga” nomenclatura, resgatada a partir de estudos técnicos e de várias consultas públicas a diversos segmentos sociais, teve o propósito de garantir que a divulgação dos trabalhos do Instituto fosse reconhecida pela própria população moradora, garantindo-lhes o pertencimento, o que não deixa de ser um avanço em termos de empoderamento.
Na definição brasileira oficial atual, o termo favela está definido pelo autorreconhecimento das desigualdades sociais que representa: “lugares com insegurança jurídica de posse, com, pelo menos, a ausência de um ou mais dos itens de serviços prestados por concessionárias públicas, além do predomínio de arruamento e edificações autoconstruídos, localizados em áreas com alguma restrição de construção”. Mas no debate público, esses aspectos dão lugar a definições que se centralizam muito mais nas estatísticas de violência urbana e insegurança pública, do que, propriamente, nas questões urbanísticas e ambientais, as quais seriam mais tangíveis, e eventualmente até mais concretas (literalmente) de se propor soluções.
No cenário mundial, o que se discute é a preocupante escalada de seu crescimento. A ONU-Habitat, durante a Assembleia do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos em 2023, declarou que, atualmente, cerca de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo vivam em algum tipo de favela. E a tendência desse número é aumentar já que é esperado que até 2050 as cidades venham a abrigar cerca de 2 bilhões a mais de pessoas que, obviamente, precisarão morar em algum lugar.
E assim, voltando ao significante favela, cujo significado no contexto urbano, ainda por muito tempo as academias debaterão, e muitos políticos renegarão, resta saber que, talvez não por acaso, é uma planta arbórea, típica da caatinga, abundante em espinhos, um de seus mecanismos de defesa, além de outros para resistir à seca, que faz desse vegetal um verdadeiro símbolo de resiliência que representa com propriedade o espírito da FAVELA, nome do qual nunca mais se deverá abdicar.
*Publicado originalmente no Diário do Rio, em 30 de janeiro de 2024.