Metrópoles e aglomerados são os mais importantes centros urbanos do país, por conta do tamanho de sua população e participação na economia, na cultura e tudo mais que afeta o desenvolvimento regional e nacional. Sua urbanização contínua ignora limites municipais e para promover a oferta qualificada de serviços públicos urbanos, a Constituição Federal estabeleceu os serviços de interesse comum, que diferem dos serviços de âmbito municipal administrados por Prefeituras.
O desafio metropolitano, que o poder público brasileiro enfrenta desde os anos 60, consiste em promover a qualidade de vida e reduzir as disparidades urbanas nas metrópoles. Em 1965, o Ministério do Interior delimitou e promoveu debates sobre o modelo de gestão estadual para regiões metropolitanas, mas a partir dos anos 90, a União se retirou do tema e os problemas se agravaram. No século XXI, a Câmara dos Deputados assumiu as rédeas da questão metropolitana.
O desafio metropolitano é um fato concreto da realidade brasileira que exige soluções e, como na política não há vácuos, o legislativo federal produziu o Estatuto da Metrópole. Sancionado em 2014, quando muitos estados já haviam criado suas metrópoles e aglomerados urbanos, segundo heterogêneos critérios próprios, o Estatuto veio para estabelecer diretrizes e procedimentos que Governos Estaduais devem cumprir. Neste cenário, sua implantação pelos estados enfrenta dificuldades que precisam ser periodicamente analisadas.
Para entender aonde chegamos é necessário lembrar o que foi feito. As políticas metropolitanas evoluíram ao longo do tempo segundo o samba enredo de cada etapa. O adotado pelo Estatuto da Metrópole difere substantivamente dos anteriores porque: o poder legislativo assumiu o papel condutor e o executivo um papel secundário; se estabelece o conceito de governança inter-federativa para orientar a estrutura e a práxis político-administrativa que será criada; e o poder executivo estadual poderá ser penalizado, ainda que muito dependa dos municípios e do poder legislativo.
Em alguns aspectos, o Estatuto se assemelha às Leis Complementares de 1973/1974. Como quando: estabelece ordenamento jurídico único para cenário nacional extremamente diversificado e exige Plano Diretor Urbano Integrado – PDUI. Ou quando ignora diferenças entre o território da metrópole – que atende redes e hierarquias urbanas; a territorialidade metropolitana – que estabelece a área sujeita a urbanização continuada da conurbação, e a territorialidade setorial – que corresponde a de cada serviço de interesse comum.
Em décadas passadas, quando metrópoles e desenvolvimento econômico eram temas globais e prioridades nacionais, o IBGE estudou a rede urbana nacional, usando variáveis da geografia econômica, regional e urbana, para oferecer diagnósticos e proposições que orientassem as políticas urbanas brasileiras.
Após a II Grande Guerra, o grande desafio global era a reconstrução de países devastados por bombardeios aéreos e a distribuição da produção econômica por suas redes urbanas. Na Rússia foi utilizado o saber do regional science de Isard para distribuir pólos industriais em cidades por detrás dos Urais. Tudo para dificultar a invasão por terra e a destruição por uma única bomba atômica. Já na França houve o fortalecimento de métropoles d’équilibre, mediante aménagément du territoire que adotava teorias de Perroux e outros, para reduzir a dominância da região de Paris no território francês.
Os países sub-desenvolvidos [terminologia da época] adotaram sambas enredo semelhantes. Os grandes objetivos eram a industrialização e o desenvolvimento econômico – vide JK, com redução das disparidades regionais – vide SUDENE. Um tema central era o papel das metrópoles na promoção do desenvolvimento nacional. Berry fizera estudo comparativo mundial e não encontrara nenhuma correlação. Mas como seria no Brasil? Como avaliar? Que programas e projetos caberia adotar? Como alcançar os objetivos? Este foi o desafio dos anos 60 e 70.
O IBGE absorveu várias correntes de pensamento para pesquisar e definir a rede urbana brasileira, cabendo aqui um destaque especial ao geógrafo francês Michel Rochefort. A metodologia quantitativa de Preston James, Walter Isard e Brian Berry também colaborou, graças a Speridião Faissol e outros.
Na década seguinte, quando as regiões funcionais já haviam sido delimitadas, o samba enredo evoluiu para a gestão de metrópoles, microrregiões e outras áreas. Muitos municípios e estados já haviam criado suas entidades metropolitanas e tornou-se necessário integrar teoria e prática para fortalecer e aperfeiçoas seus sistemas de planejamento e gestão. Para isso, em 1965, o Ministério do Interior reuniu especialistas e entidades metropolitanas e foi adotado um programa de trabalho para encaminhar a questão metropolitana que acelerou a consolidação das instituições metropolitanas, com apoio técnico e financeiro do SERFHAU / BNH para planos diretores urbanos e setoriais. Em 1968, Faissol assumiu a coordenação do Grupo de Áreas Metropolitanas (GAM) do IBGE que, em 1973, produziu seu documento setorial. Após, a Lei Complementar no 14/73 delimitou o território e estabeleceu um modelo padrão para gestão de oito metrópoles que, como cidades-mãe, polarizavam macro regiões nacionais. Ao incluir Belém do Pará, a LC atendia demandas políticas visto que a metrópole amazônica carecia de urbanização continua supra-municipal, assim como ignorou a metrópole carioca e indicou para a fusão estadual que permitiria atender a Constituição.
Um pecado original da LC no14/73 foi selecionar e delimitar oito metrópoles a partir das funções regionais e ignorar outros núcleos urbanos em que havia conurbação supra-municipal. Como solução foram criados aglomerados urbanos, definidos e delimitados pelo IBGE para que Secretaria Executiva da CNPU apoiasse conurbações de capitais estaduais [Maceió, Florianópolis, Goiânia, etc], bem como outros aglomerados do país.
O samba enredo das Leis Complementares envolvia a melhoria das condições urbanas para fortalecer o desenvolvimento econômico; redução de disparidades regionais e modernização da administração pública. Seu modelo de gestão correspondia ao sistema político autoritário, centralizado e técnico da época, que permitia uma gestão inter-governamental em que o nível federal apoiava.
programas regionais inter-urbanos e programas setoriais, como habitação, saneamento, patrimônio histórico e outros; os estados coordenavam programas regionais e setoriais, e a gestão de projetos intra-urbanos de metrópoles; e as prefeituras respondiam por atividades intra-urbanas municipais.
Esta política urbana multidisciplinar e intergovernamental buscava o bem estar do cidadão e teve resultados positivos, enfrentou dificuldades e gerou fiascos. Alguns dos quais ressurgem na Estatuto da Metrópole, como a dificuldade para estabelecer territorialidade metropolitana que corresponda às exigências de planejamento de gestão de serviços metropolitanos. Ou a definição autoritária do sistema político-administrativo para gestão metropolitana.
A abertura política dos anos 80 produziu um samba enredo que surge na eleição dos antes nomeados prefeitos de capital, quando a gestão metropolitana foi enfraquecida por prefeitos de capital que eram candidatos naturais à sucessão do Governador em exercício. Além disso, prefeitos de municípios menores aceleraram a destruição da gestão metropolitana com medidas administrativas bastante simples. Como a de proibir o trânsito de caminhões de lixo de outros municípios por seu território.
Na transição do governo autoritário para o da Constituição Cidadã de 1989, a gestão metropolitana praticamente desapareceu por conta do rol de atribuições outorgadas aos municípios na gestão urbana; a ênfase na gestão participativa; a escassa presença do governo federal em políticas urbanas, e a transferência da questão metropolitana para o nível estadual.
Mais tarde, o Ministério da Cidade adotou fundamentos e políticas preconizadas pela Reforma Urbana que ignoravam a realidade factual da práxis metropolitana. O entendimento foi de que metrópoles eram a soma de cidades cuja gestão cabia às prefeituras. Serviços de interesse comum ficariam sob competência municipal; a gestão metropolitana foi classificada de entulho do regime autoritário.
No Poder Legislativo, porém, logo surgiu outro entendimento. Em 2004, o Deputado Walter Feldmann apresentou o Projeto de Lei no 3.460/04, que institui diretrizes para a Política Nacional de Planejamento Regional Urbano e cria o Sistema Nacional de Planejamento e Informações Regionais Urbanas. A partir da aprovação deste PL pelo Poder Legislativo e sua sanção pelo Presidente da Republica, o responsabilidade maior pela gestão metropolitana foi transferida do Poder Executivo para o Poder Legislativo – estadual e municipal.
Com este resumo da evolução da questão metropolitana, chegamos aos dias de hoje, quando o tema continua sendo debatido no cenário global e nacional. A implantação do Estatuto da Metrópole enfrenta inúmeras questões, carências e gargalos, cuja solução exige o apoio da União, em especial do IBGE, do IPEA e do Ministério da Cidade. Como estudos, planos e projetos para o planejamento, gestão ou redução das disparidades do tecido urbano, que exigem variáveis e territorialidades que dependem do IBGE. Entidades metropolitanas levaram ao IPEA e Ministério da Cidade problemas que enfrentam para alcançar objetivos a que se propõem. Como a governança inter-federativa, difícil de conceituar e mais difícil ainda de implantar a nível local; ou a escolha dos serviços interesse comum cujas características correspondam àquela metrópole ou aglomerado; ou comointegrar o planejamento territorial com projetos de serviços comuns e planos diretores, projetos e serviços municipais.
A atual crise política e econômica limita a capacidade do gestor público para investir nos projetos e obras exigidas pela governança inter-federativa. Ainda assim, o poder executivo estadual será punido se não cumprir o Estatuto, embora não receba apoio da União; não disponha de recursos administrativos, técnicos e financeiros; esteja sujeito a perdas políticas, e dificilmente irá desfrutar vantagens e resultados pelo esforço de cumprir o Estatuto. Num cenário confuso, em que várias assembléias estaduais aprovaram decisões esdrúxulas, que conflitam com a realidade e com o espírito e objetivos do Estatuto da Cidade.
O Estatuto da Metrópole foi criado para que, em cada metrópole que integra a realidade urbana nacional, haja políticas públicas que aperfeiçoem a qualidade de vida de cada cidadão. Para obter resultados será necessário concentrar esforços – públicos e privados, bem como tratar o inovador Estatuto com cuidado e atenção. Neste sentido espera-se que o Seminário no IBGE permita oferecer aperfeiçoamentos e que iniciativas do Ministério da Cidade permitam avaliar questões complementares. As expectativas são muito favoráveis.
Publicado em 30/09/2016