Consta na pauta da sessão plenária da Câmara dos Deputados da próxima quarta-feira, dia 24/05/17, como primeiro item, a discussão do Projeto de Lei de Conversão 12/2017, denominação atualizada da Medida Provisória 759/2016, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, entre outras medidas. Se aprovado, o documento será encaminhado ao Senado, que terá até o dia 01/06, sexta da próxima semana, para tomar sua decisão. Caso contrário, a MP, que hoje vale como lei, cessará seus efeitos, pois terá “caducado” o prazo final para sanção presidencial.
Entre as reformas propostas pelo governo Temer, a da regularização fundiária é a que menos tem sido destacada pela imprensa nacional, mesmo com seguidas manifestações contrárias de entidades de diferentes setores e movimentos sociais. A MP estava a ponto de ser votada pelo plenário da Câmara do dia 17, momento em que veio a público a notícia sobre a delação premiada dos donos do grupo J&F, o que causou o encerramento abrupto da sessão.
O documento tem sido objeto de intensa crítica, inclusive das entidades de Arquitetura e Urbanismo por desmontar de uma maneira açodada um arcabouço urbanístico e jurídico fruto de amplo processo de discussão e consolidação nos últimos 20 anos, invadir competências municipais e conter itens inconstitucionais.
Exigências urbanísticas são relegadas em favor de aspectos de mercado. Permite-se regularização imediata de áreas sem prévia urbanização, legalização de condomínios construídos sobre terras griladas, fechamento de condomínios e ruas e até a dispensa do Habite-se em certos casos.
“A regularização fundiária não é disciplina de direito imobiliário, mas de direito urbanístico. Seu objetivo não é produzir propriedade, mas gerar cidades”, afirma Haroldo Pinheiro, presidente do CAU/BR, a propósito da justificativa dada à MP 759/2016. Segundo o governo, a regularização fundiária urbana contribuirá para “o aumento do patrimônio imobiliário do País”, por representar a inserção de capital na economia, à medida que agrega valor aos imóveis regularizados, permite ao Poder Público cobrar impostos (IPTU, ITR E ITBI) e facilita aos proprietários a obtenção de créditos, dando seus imóveis como garantia. Ou seja, a inclusão apressada das áreas regularizadas no “mercado imobiliário” mostra que o fator tributário, não o social, foi determinante para deixar a urbanização em segundo plano. “Precisamos gerar cidades dignas, não propriedades precárias para arrecadar impostos”, diz o presidente do CAU/BR.
Clique no link para acessar a manifestação do CAU/BR e demais entidades do Conselho com Participação das Entidades de Arquitetura e Urbanismo do CAU/BR (IAB, FNA, AsBEA, ABEA, ABAP e FeNEA), ratificada no IV Seminário Legislativo de Arquitetura e Urbanismo promovido pelo CAU/BR em abril passado.
Conheça, em detalhes, as principiais críticas feitas à MP, sob o ponto de vista urbanístico:
BAIRROS DE PAPEL – “Uma das maiores preocupações do CAU/BR é a permissão para que os assentamos urbanos sejam regularizados sem intervenções urbanísticas e infraestrutura, criando “bairros papel”, pois bastaria a entrega do título de posse para inserir a gleba ocupada no sistema formal da cidade”, afirmou o presidente do CAU/BR, Haroldo Pinheiro, em audiência pública promovida pela Comissão Mista do Congresso que analisou a matéria. Após tais críticas, no processo de transformação da MP 759/2016 no Projeto de Lei de Conversão 12/2017, a única coisa que se avançou a respeito foi a exigência de um cronograma de obras para implantação da infraestrutura após a concessão do certificado de regularização fundiária. “Ocorre que o projeto é omisso em relação ao que fazer em caso de descumprimento do cronograma, não responsabiliza o prefeito e não condiciona o empreendimento à programação financeira do Município no mandato do executivo ordenador das obras, desrespeitando a Lei de Responsabilidade Fiscal”, afirma a advogada Rosane Tierno, especialista em direito urbanístico e com ampla experiência de campo em regularização fundiária.
A PREVALÊNCIA DO INTERESSE DOS GRILEIROS SOBRE O INTERESSE SOCIAL – Na visão do CAU/BR, a MP 759/2016 subtrai os aspectos sociais da matéria, ao impor novas exigências para a legitimação fundiária em áreas ocupadas informalmente por população de baixa renda (Reurb-S) e ao flexibilizar a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão (Reurb-E), inclusive em áreas de preservação ambiental.
Para a população de baixa renda exige-se que não seja proprietário de outra área, por exemplo, e para a de alta renda não. Condomínios de população de alta e média renda originários de terrenos grilados serão legitimados mais facilmente que os assentamentos populares.
No caso da Reurb-S caberá ao Município promotor ou ao DF a tarefa de implantar a infraestrutura essencial, livrando a responsabilidade de muitos grileiros, sem que exista garantia de que os Municípios poderão arcar efetivamente com tais gastos.
No caso da Reurb-E, a infraestrutura necessária fica por conta do beneficiário, mas há uma exceção. Naquelas Reurb-E sobre áreas públicas, o Município poderá proceder ao custeio do projeto de regularização fundiária e da implantação da infraestrutura essencial, com posterior cobrança dos beneficiários, algo que igualmente não se pode garantir que ocorrerá.
PRECARIZAÇÃO DA MORADIA – O Projeto de Lei de Conversão 12/2017 dispensa a exigência do Habite-se nos casos de regularização de conjuntos habitacionais localizados em áreas Reurb-S, favelas, cortiços (denominados no texto com o eufemismo de “condomínios urbanos simples”) e construções sobre lajes. “Nada disso constava da MP 759/2016. Além de invadir competência dos Municípios, únicos que podem legislar sobre a exigência do Habite-se, a MP consolida a precarização da moradia no país”, lembra a advogada Rosane Tierno.
Segundo Haroldo Pinheiro, “é importante, sem dúvida, regularizar essas tipologias habitacionais, mas desde que respeitadas as condições para garantir a segurança dos imóveis contra incêndios ou desabamentos, salubridade e a dignidade de seus moradores”.
FALTA DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA – Outro aspecto importante é a falta de obrigatoriedade de assistência técnica nos casos em que se aplicaria o instrumento do “direito de laje”, que permite, por exemplo, o registro como unidade imobiliária autônoma de moradia construída na laje de imóvel de terceiro, alterando o Código Civil. “A medida pode inclusive incentivar e ampliar o número de moradias inseguras e insalubres”, diz Roseane Tierno.
A MP não atenta para a falta de exigência de um responsável técnico, o licenciamento e o habite-se, jogando para os Municípios e para o Distrito Federal a decisão sobre legislar ou não sobre tais aspectos. Ou seja, para a regularização bastariam a averbação da construção e a matrícula autônoma das lajes, mesmo sem respeito a qualquer preceito urbanístico.
Outro aspecto que exige solução técnica, não apenas jurídica, é a questão da garantia de acesso às áreas comuns como passagens internas ou escadas externas.
INCENTIVO À EXCLUSÃO SOCIAL – “No substitutivo da MP 759/2016, elaborado pelo relator da Comissão Mista, foram incluídos também itens novos que nada tem a ver com regularização fundiária, isto é, a regularização do que já está feito. Trata-se da permissão para que lei municipal criem “loteamentos de acesso controlado” e “condomínios de lotes” ainda a serem empreendidos”, chama a atenção a advogada Rosane Tierno. Com tais dispositivos, na visão de Haroldo Pinheiro, ao invés de integrar as áreas hoje informais à cidade formal, a MP amplia os “muros” que as separam”.
CONTRADIÇÃO COM OS COMPROMISSOS ASSUMIDOS COM A ONU – “Os processos desencadeados pela MP 759 não contribuem para a efetiva implementação da Nova Agenda Urbana de forma a tornar as cidades e os assentamentos humanos mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. A Nova Agenda foi recém definida pelas Nações Unidas na conferência Habitat III e do qual o Brasil foi um dos signatários”.
POR QUE AGORA E A PRESSA? – “A MP 759/2016 trata de assuntos de vital importância e o aprimoramento de legislações é natural, mas o correto seria o governo propor um projeto de lei a respeito, para possibilitar em um tempo adequado uma maior participação da sociedade nos debates. Inclusive do Conselho das Cidades, onde estão representados todos os movimentos sociais, as entidades empresariais, a academia e as instituições de classe, mas que não se reúne há um ano por falta de convocação pelo Ministério das Cidades. Assusta muito o fato da MP estar em vigor, pois tem valor de lei, e não se sabe os desdobramentos que isso está gerando pelas consequências dos atos que estão sendo gerados sob seu manto”, diz Haroldo Pinheiro.
ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS – Para juristas do IBDU (Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico) a regularização fundiária não justifica, constitucionalmente, sua edição como MP, que deve ser exclusiva para matérias de comprovada urgência. Outros itens inconstitucionais é a isenção do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Mobiliários), invadindo competência municipal, com potencial reflexo no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal pelas Prefeituras. Da mesma forma, a liberação do Habite-se, nos casos já mencionados acima, avançam sobre assuntos de exclusiva jurisdição municipal. Além disso, segundo Rosane Tierno, a legitimação fundiária proposta pode ser encarada como uma “forma obliqua de usucapião”.
MUDANÇA GERAL – Com o desmonte do arcabouço urbanístico e jurídico sobre a regularização fundiária urbana construído nas duas últimas décadas, com participação da sociedade, e já incorporado pelos Municípios, pelos cartórios e por provimentos da Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Conselho Nacional de Justiça, haverá necessidade de uma custosa transição. Custosa em tempo para adaptações de legislação urbanísticas como Planos Diretores e Leis de Uso e Ocupação do Solo de cidades de todo país, bem como das normas de serviços de tribunais e cartórios. E custosa também em termos de reciclagem dos corpos técnicos dos organismos públicos e privados envolvidos com o tema. Para Rosane Tierno, o resultado será uma paralisação dos procedimentos de regularização fundiária no país de cinco dez anos. Além do “congelamento”, desde a edição da MP 759/2016, de dezenas de projetos em andamento em todo país, dada a incerteza criada pela medida.
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