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“Cidades Ameaçadas”, artigo de Luiz Fernando Janot em “O Globo”

Luiz Fernando Janot é conselheiro federal do CAU/BR pelo Rio de Janeiro.

 

A cidade não é uma abstração, ela é produto de diferentes sociedades estratificadas em seu território ao longo da história. Com o crescimento estimado da população mundial de 7,2 bilhões para 10 bilhões até 2050 – um aumento da ordem de 40% – acende-se um sinal de alerta para o grave problema da exclusão social e, consequentemente, para os modelos de planejamento das grandes metrópoles. Caso prevaleça o atual descaso em relação às populações de baixa renda, não resta dúvida de que os contrastes sociais irão se agravar progressivamente.

 

O estigma do medo que permeia a vida nas cidades brasileiras favoreceu a criação de condomínios residenciais fechados e de áreas restritas para o lazer e convívio social. Enquanto estes espaços são mantidos por meio de altas taxas condominiais, os espaços públicos são relegados à míngua pela absoluta falta de recursos para a sua manutenção. Não vemos no Brasil uma política urbana capaz de enfrentar os complexos desafios da cidade contemporânea.

 

Infelizmente, o velho maniqueísmo ideológico ressurgiu das cinzas para comprometer, cada vez mais, a gestão democrática das cidades. A intransigência que prevalece nos embates políticos impede que novas metodologias sejam utilizadas nos processos de planejamento urbano. Atualmente, assiste-se um difícil dilema envolvendo aqueles que defendem o intervencionismo abrangente do Estado e os que só enxergam qualidade nas ações da iniciativa privada. Na verdade, são faces de uma mesma moeda. Ambos buscam vantagens imediatas e poucos se importam com as consequências nocivas do seu sectarismo político e ideológico. No final das contas quem irá pagar o alto preço desse radicalismo inconsequente é a própria cidade e, obviamente, os seus habitantes.    

 

Alonso Salazar, ex-prefeito de Medellín, alerta para o fato de que “quando se tem um poder absoluto e a capacidade de decidir sobre tantas coisas e tantas vidas, simultaneamente, a relação com a realidade muitas vezes se perde. Os poderosos criam o seu próprio mundo, uma espécie de realidade virtual, do qual não têm como voltar atrás”. Tal comportamento se evidencia na conduta dos dirigentes e empresários corruptos que se envolveram nos escândalos que estão sendo divulgados pela mídia.

 

Não resta dúvida da necessidade de se criar um modelo de gestão pública mais ágil, mais flexível, mais transparente e menos burocrático, para fazer frente à velocidade com que ocorrem as transformações culturais, econômicas e sociais no mundo contemporâneo. Neste contexto, o atual determinismo financeiro não poderá continuar prevalecendo sobre os valores que atuam na conformação de uma cidade mais justa, equânime e harmoniosa.

 

Há que se recorrer aos novos recursos tecnológicos para identificar e avaliar as necessidades e anseios da população e, consequentemente, propor diferentes modelos espaciais para a ocupação territorial das cidades brasileiras. Não se pode mais aceitar que o ordenamento espacial seja feito, exclusivamente, por meio de índices de aproveitamento do solo, de densidades ocupacionais abstratas e gabaritos verticais aleatórios. É indispensável que sejam incorporados os projetos urbanísticos e o desenho urbano no planejamento das cidades.

 

Para que se alcance a eficácia desejada na elaboração e implantação dos Planos Diretores há que se aperfeiçoar e atualizar permanentemente os instrumentos de planejamento e, sobretudo, deixar de lado a ortodoxia ideológica que tende a comprometer a sua aplicação. Caso contrário, os planos se tornarão ultrapassados antes mesmo de serem aplicados. Fixar diretrizes de longo prazo, com metas específicas de médio e curto prazo, constituem elementos indispensáveis para se alcançar um desenvolvimento urbano resiliente e sustentável.

 

Sobre a polêmica envolvendo o UBER e os taxis do Rio, o que de fato me preocupa é o aumento progressivo desse número de veículos – sem regulamentação – circulando pelas ruas para atender unicamente aos que podem pagar por este tipo exclusivo de serviço. Imagine se a população de baixa renda reivindicar o mesmo direito em relação à volta das vans piratas que utilizavam como alternativa ao precário sistema de transporte coletivo. Em ambos os casos, a falta de regra é um fator prejudicial aos interesses da cidade.

 

Publicado em 04/08/15. Com autorização do autor.

8 respostas

  1. .
    MÁ GESTÃO PÚBLICA OU “DESGOVERNO”: Retrato de um País sem comando… nas mãos de INCOMPETENTES…
    .
    O Governo Federal está desmoralizado em meio a tantas denúncias de corrupção, a tantas intervenções desastrosas na política econômica do País, acarretando na falência de diversas empresas que por sua vez, faz aumentar a cada dia, a taxa de desemprego.
    .
    Atualmente, o Brasil é um navio à deriva… a situação chegou a um ponto insustentável.
    .
    Mesmo quem ainda conseguiu preservar o emprego vive diariamente um pesadelo sem fim, com muita dificuldade para honrar os compromissos de todos os meses….

  2. Belo artigo dr. Janot; evidenciando seu amplo conhecimento das necessidades do Brasil, em especial às grandes metrópoles. Em relação ao uber, Pergunto-lhe! Não esta claro que os governos, interfere e regula em demasia as atividades empresariais, seja qual for o seguimento, não atendendo aos anseios da população, conforme seu artigo ? O que podemos fazer agora para melhorar um futuro que; cronologicamente não é tão distante assim?

  3. Este belo artigo do Conselheiro Prof Arquiteto Luiz Fernando Janot,além de ser conciso e oportuno no contexto atual de debates estereis sobre a crise urbana nos países em desenvolvimento,traz a tona de forma eloquente e serena, o que poucos ousam abordar de forma franca e corajosa, numa leitura mais coerente para a compreensão da realidade das cidades contemporâneas brasileiras e suas regras desconexas com a realidade e a essência de uma verdadeira polis geradora de uma cidadania mais equânime.A ausência total de um verdadeiro planejamento urbano condizente com as perspectivas de uma sociedade em constante mutação em suas idiossincrasias.

  4. Parabéns professor Janot! Precisamos de ter sempre mentes brilhantes e esclarecidas como a sua para nos lembrar que a Cidade é para todos e não para grupos hegemônicos!

  5. Uma renovação Institucional é fundamental para atuação dos arquitetos e por enquanto nada acontecee muito pelo contrário, instituições como IAB se fecham ao debate e atuação… os problemas se repetem e são abordados por quem já esteve no comando!Indices e estatísticas não são elementos confiáveis quando a miséria aumenta dia a dia , e as idéias padecem pelas conveniências… Tudo isso já sabemos, mas a possibilidade de atuação e aplicação das idéias, isso sim é um problema para os arquitetos. Por trás de um discurso pode estar o “ovo da serpente! pense nisso! Paulo Fonseca

  6. Amei o quetionamento do crescimento sem controle das cidades, até parece que os planos diretores (em sua maioria) são bem elaborados e praticados. Em geral são pessimos arquitetos/engenheiros em cargos publicos, que só cumprem horário e trabalham p/ o proprio beneficio… Mas uma grande e ÉTICA equipe multidiciplinar colocando em pratica os instrumentos do planejamento urbano … ainda acredito em um futuro bem diferente. Em mudança das atitudes politicas.

  7. Com dinheiro para patrocinio o CAU em acordo com produtoras de software poderia adquirir programas de projeto, CAD, BIM, etc disponibilizar uso sob demanda. Algumas horas free para arquitetos em dia com CAU. Apos com valores subsidiados. Revertendo verbas disponiveis diretamente para profissionais. Nao descontos na compra. Mas um projeto agressivo e consistente em beneficio de seus pares.

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