Carla Tames é arquiteta e urbanista, conselheira federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e coordenadora da Comissão Especial de Política Urbana e Ambiental (CPUA-CAU/BR)
As cidades são o reflexo de nossas escolhas enquanto sociedade. Seus espaços, sistemas e infraestruturas carregam as marcas de decisões históricas e políticas que moldam o cotidiano de seus habitantes. Entretanto, um olhar mais atento revela uma falha estrutural evidente: as cidades frequentemente não são projetadas para acolher e proteger as mulheres em suas múltiplas jornadas diárias.
Ao considerar as experiências femininas no espaço urbano, não podemos nos limitar a apontar deficiências pontuais. É necessário compreender a cidade como um organismo dinâmico, onde o planejamento urbano desempenha um papel crucial na promoção ou na restrição da equidade. A ausência de políticas que considerem as necessidades das mulheres perpetua vulnerabilidades: ruas mal iluminadas, transporte público inseguro e a falta de acessibilidade em espaços urbanos tornam-se barreiras que restringem o direito básico à cidade.
A urbanização desordenada tem historicamente ignorado a perspectiva das mulheres. É fundamental entender que a insegurança que muitas enfrentam nos centros urbanos não se limita a violência física. Há uma violência estrutural mais insidiosa, que se manifesta na exclusão econômica, na precariedade dos serviços básicos e na negligência quanto às demandas específicas de diferentes contextos de vida.
Dessa forma, a construção de cidades verdadeiramente inclusivas requer não apenas ações isoladas, mas uma transformação profunda no modo como pensamos o planejamento urbano. Isso significa repensar a iluminação, a acessibilidade, os espaços de convivência, as políticas de mobilidade e os sistemas de atendimento público com uma visão que coloque a dignidade humana no centro.
Uma cidade pensada para as mulheres deve atender às suas necessidades específicas, oferecendo serviços indispensáveis como creches públicas acessíveis e distribuídas estrategicamente, para que mães possam equilibrar trabalho e vida familiar. Áreas de lazer seguras, bem iluminadas e monitoradas são essenciais para que mulheres e crianças possam desfrutar de momentos de convivência e bem-estar. Banheiros públicos adequados, limpos e acessíveis não são um luxo, mas uma necessidade fundamental, frequentemente negligenciada nos espaços urbanos.
O transporte público também deve ser planejado para garantir segurança, conforto e acessibilidade. Isso inclui a implementação de paradas bem iluminadas, câmeras de segurança e rotas que considerem horários e trajetos que priorizem a segurança das passageiras. Além disso, centros de atendimento à saúde e assistência social devem estar próximos das áreas de maior densidade populacional, com foco em acolher e apoiar mulheres em situação de vulnerabilidade.
Nesse cenário, o papel de gestores, planejadores e arquitetos urbanistas, é mais do que técnico: é ético e social. Trata-se de compreender que cada decisão (seja no desenho de uma praça ou na formulação de um plano diretor) impacta vidas de maneira concreta e muitas vezes definitiva. Garantir que a mulher possa circular, trabalhar, criar seus filhos e viver com segurança e autonomia deve ser prioridade em qualquer cidade que se proponha a ser moderna e justa.
Ao planejar é preciso antecipar demandas. Isso exige dados sólidos, escuta ativa e a inclusão efetiva das mulheres nos processos de decisão. Planejar não é apenas organizar espaços, mas assegurar que cada metro quadrado da cidade responda às reais necessidades de seus cidadãos, especialmente daquelas que historicamente foram ignoradas.
Reabilitar a cidade para a vida é um chamado urgente. Um espaço urbano funcional, seguro e humano é aquele que reconhece e respeita as experiências femininas em sua diversidade. A construção de cidades acolhedoras e acessíveis para as mulheres não beneficia apenas elas, mas enriquece a qualidade de vida de todos os cidadãos, criando espaços de convivência e prosperidade compartilhada.
Como arquiteta e urbanista, há tempo dedico minha vida a transformar cidades em lugares de possibilidades, onde a dignidade seja um direito inalienável.
Precisamos de cidades que reflitam não apenas nossas aspirações, mas que respeitem e abracem a realidade de todos os seus habitantes. Somente assim poderemos construir um futuro verdadeiramente inclusivo e humano.
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