Desafios para uma Nova Agenda Urbana
Nessa terceira parte do relatório, elenca-se de maneira sintética as principais aspirações, diretrizes e objetivos de uma nova agenda urbana brasileira para os próximos vinte anos, visando elencar ações necessárias para transformar o processo de urbanização brasileiro. E, ao mesmo passo, visando revelar objetivos que permitam a união de posições diferentes, mas não antagônicas, na construção de uma nova agenda mundial.
Nesse sentido as formulações estão organizadas apresentando, primeiramente, os objetivos, que em certa medida se revelam como diretrizes e princípios fundamentais. Em seguida, são apresentadas formulações relacionadas ao caso brasileiro, que na maior parte dos casos, é de universalização de acesso, dando conta de velhos desafios. Há também proposições que olham para o futuro das cidades, sobretudo relacionadas com inovação tecnológica adaptada às realidades de desenvolvimento do país e condições de vida.
As visões de mundo e de cidade expressas aqui para os próximos vinte anos são derivadas da análise feita do processo de urbanização brasileiro durante o último período, e ao mesmo tempo, relacionando e compatibilizando posições políticas expressas nas consultas que integram o processo participativo de elaboração deste relatório, além do uso de referências bibliográficas, bem como de diretrizes e posições expressas nos programas, ações e acordos internacionais do governo federal.
Olhar para cidade do futuro é reconhecer primeiramente que se está diante de uma complexidade. A cidade no Brasil, mas também em todo o mundo, não é mais explicável a partir de dualidades, simplesmente: formal e informal, regular e irregular, com ou sem acesso, visível ou invisível, etc. No caso brasileiro várias conquistas recentes, sobretudo no quadro jurídico nacional, viabilizam a produção do urbano e também a compreensão da sociedade para além das antigas dualidades. Por outro lado, em todo o mundo, as novas tecnologias criam um espaço virtual urbano em que as pessoas e suas ações também escapam dos velhos rótulos.
Nesse sentido, seguem as posições tidas como comuns, e não posições únicas de uma pessoa ou instituição, e que foram sistematizadas desde setembro de 2014, quando se iniciou esse processo, no contexto dos debates ocorridos no Grupo de Trabalho do ConCidades, a partir das contribuições estruturantes oriundas do Seminário Nacional Habitat III e das contribuições via plataforma de participação social. Inicialmente, diretrizes, princípios e objetivos gerais para a construção de uma nova agenda urbana:
- consolidar o entendimento compartilhado e reconhecer o direito à cidade como noção fundadora na produção dos territórios.
- Promover cidades inclusivas, solidárias e sustentáveis, tendo especial atenção aos grupos historicamente excluídos.
- promover a educação cidadã e garantir o acesso dos jovens, pessoas idosas e pessoas com deficiência, sem discriminação, aos serviços e equipamentos urbanos, assegurando o exercício do direito à cidade e a promoção da cidadania, além de garantir o acesso aos meios para a produção da cultura e da identidade urbana, com segurança e autonomia.
- contribuir para a igualdade de gênero e de oportunidade no acesso ao ensino e ao mercado formal de trabalho, promovendo serviços de creches e escolas de tempo integral e de proximidade ou associados ao sistema de transporte público.
- promover cidades com segurança para as mulheres, em especial no sistema de transporte público e na organização do espaço público, levando em consideração suas necessidades específicas das mulheres.
- promover acessibilidade nas cidades, considerando princípios de desenho universal e adaptação razoável, em benefício de todas as pessoas, em especial de pessoas idosas e pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida.
- reforçar os mecanismos de instituição da transparência universal da gestão urbana e das finanças públicas (open data), com a participação e controle da sociedade.
- promover o uso e o acesso a tecnologias apropriadas e adaptadas de geração de energia renovável de proximidade e a redução do consumo energético das famílias.
- promover uma política de circulação de bens de proximidade, estimulando notadamente a produção e o comércio de produtos oriundos da agricultura peri-urbana e urbana, além da economia solidária e da economia circular.
- fomentar a elaboração de políticas de recuperação e valorização do espaço público e comum, assegurando meios e condições para seu uso, melhorando a imagem da cidade e aumentando a estima dos habitantes pelo espaço da sua cidade.
- garantir o cumprimento das diretrizes nacionais e internacionais para remoção involuntária de famílias, de maneira digna e com alternativas de moradia, definitivas ou provisórias, negociadas, monitorando e reduzindo os conflitos fundiários urbanos, por meio de mediação e negociações.
- Promover a cooperação internacional para a consecução do desenvolvimento urbano sustentável, fomentando, entre outros, a cooperação bilateral, triangular e multilateral, com especial atenção para a cooperação sul-sul; a facilitação de tecnologia; e o cumprimento pelos países desenvolvidos de seus compromissos em matéria de ajuda oficial ao desenvolvimento (ODA).
- Quanto às diretrizes gerais, mais ligadas às cidades brasileiras, mas que revelam também posicionamentos no quadro geral de uma nova agenda urbana, segue:
- promover a educação ambiental, por meio de programas que incentivem comissões de qualidade de vida na escola, formação de professores e processos voltados para a questão da sustentabilidade ambiental.
- Promover a regularização fundiária de assentamentos irregulares, povoados, vilas, distritos e sedes de municípios brasileiros, de modo a garantir a segurança jurídica na posse à população moradora, por meio da titulação, e a desimpedir investimentos públicos e privados no território, fomentando o desenvolvimento econômico e social das cidades.
- Estruturar a política nacional de mediação de conflitos fundiários urbanos, com ênfase no estabelecimento de procedimentos e condutas para o tratamento dos casos e no fomento à criação de instâncias regionais de mediação.
- efetivar, nos três níveis da federação, a função social da propriedade e da cidade, inserindo a cidadania como meio e fim de uma nova agenda urbana.
- formular e implementar a política nacional de desenvolvimento urbano de forma integrada com as políticas de desenvolvimento regional, adaptando as políticas públicas às diferenças regionais e de escala das cidades, visando a integração do território nacional e a diminuição das diferenças regionais.
- prosseguir com o debate sobre criar em parceria com estados e municípios o sistema nacional de desenvolvimento urbano, efetivando a participação e o controle social.
- trabalhar pelo aperfeiçoamento do modelo federativo, com consolidação da autonomia municipal, desconcentrando o acesso a equipamentos e serviços no território nacional e nas cidades, com a adequada provisão de recursos, tendo como consequência a diminuição das desigualdades regionais e intraurbanas.promover o empreendedorismo e a inovação garantindo nos espaços públicos e comuns o acesso livre e gratuito aos meios virtuais de interação (web), visando ativar a economia da cidade e o acesso à informação, valorizando a estima da população e aprofundando sua identidade com o lugar de vida.
- promover o amplo acesso às informações acerca do território urbano, garantindo sua análise estratégica para a formulação de uma efetiva política de segurança pública, que não faça distinção de cor ou raça, gênero, idade e renda, valorizando os moradores e a segurança no espaço publico comum e combatendo todas as formas de violência policial.
- promover a instituição e revisão dos planos diretores participativos e demais formas de planejamento urbano territorial, efetivando o princípio constitucional da função social da propriedade, assegurando a efetiva aplicação dos instrumentos jurídicos e urbanísticos, orientando o orçamento plurianual e anual para garantir sua efetivação.
- fomentar a formação de consórcios públicos entre Municípios e entre os outros entes federativos no âmbito do planejamento urbano, da gestão do território e da efetivação das funções públicas de interesse comum.
- promover a diminuição das distâncias dos trajetos cotidianos na cidade por meio da instalação de equipamentos de vizinhança, do policentrismo e da organização do mercado de trabalho.
- promover a instituição da governança metropolitana com solidariedade territorial e autonomia local, implantado reformas fiscal, institucional e orçamentária que viabilizem a execução em termos redistributivos do acesso aos equipamentos e serviços públicos e para a implementação das funções públicas de interesse comum, com participação e controle social e transparência da ação pública.
- Prevenir danos causados por desastres naturais e ou minimizar impactos e danos provocados por esses por meio de políticas de prevenção e mitigação implementadas de maneira coordenada pelas três escalas da federação e, notadamente, promover o manejo intra-lote das águas pluviais, com segurança sanitária, além da implementação da gestão e execução enquanto serviço público da drenagem urbana.
- garantir o desenvolvimento econômico local por meio do aprimoramento legal e das políticas que fomentam o empreendedorismo, instituindo tributações e tarifas progressivas e adaptadas às condições de renda e da localização dos empreendimentos.
- promover a elaboração de agendas estaduais e municipais de trabalho decente;
- promover condições dignas e seguras de trabalho para catadores de materiais recicláveis, ambulantes e demais trabalhadores que exercem suas atividades econômicas nas ruas, com capacitação e qualificação, incentivando o microempreendedorismo e a economia solidária, a formação de identidades urbanas e o aumento da estima dos habitantes.
- ampliar a política de reabilitação de imóveis associando-a às politicas habitacionais, de mobilidade e de geração de emprego e renda em áreas com infraestrutura e serviços já instalados, promovendo os mecanismos de combate à gentrificação, assegurando a permanência das populações tradicionais e a utilização dos imóveis vazios.
- promover tributação imobiliária progressiva e captura das valorizações fundiárias e imobiliárias, além de promover a cobrança progressiva dos serviços públicos, distinguindo públicos específicos relacionados à vulnerabilidade.
- integrar o financiamento habitacional ao planejamento urbano, promovendo cidades mais justas e solidárias.
- promover a urbanização integral e integrada da totalidade de favelas e assentamentos precários, assegurando acesso aos serviços e equipamentos públicos, promovendo a geração de centralidades e subcentralidades urbanas nas áreas, assegurando o acesso à urbanidade e à cidade.
- universalizar o acesso as infraestruturas de saneamento básico nas cidades, garantindo o abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, manejo dos resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, como bem público e coletivo, instituindo tarifas sociais ou taxas, alinhadas com à política nacional de desenvolvimento social e combate à pobreza.
- promover a ampliação dos índices de mobilidade urbana como forma de acesso à cidade, garantindo para os estratos sociais de menor renda o acesso social aos serviços de transporte público, e diminuição das distâncias e tempos de deslocamento, integrando as políticas de mobilidade ao planejamento urbano e às politicas de uso e ocupação do solo e com atenção à acessibilidade do transporte público.
- promover o desenvolvimento das cidades de modo que calçadas, passeios, faixas de travessias, passarelas, escadarias, ciclovias e/ou ciclofaixas, etc. integrem a infraestrutura urbana de circulação, com acessibilidade universal, com alta qualidade urbanística dos projetos de recuperação e adaptação da infraestrutura, contribuindo para a valorização do espaço público e comum.
- aumentar a participação do transporte coletivo na matriz modal e integrar os diferentes modais, inclusive os não motorizados, identificando critérios técnicos e produzindo informações e indicadores para a definição de soluções e tomada de decisão, além de garantir a coordenação com o que preveem os planos diretores.
- instituir políticas de regulação do uso do transporte individual otimizando o uso do sistema viário e mitigando os congestionamentos.
É importante reconhecer que as cidades são muito diferentes entre si e, por isso, necessitam de estratégias, mecanismos e instrumentos adequados as suas especificidades. As proposições expressas aqui são, entretanto, em sua grande maioria de caráter genérico, possibilitando a declinação para cada situação especifica e o uso nas mais diversas politicas. As metrópoles comparecem com desafios importantes do ponto de vista da complexidade dos problemas, da desigualdade, da violência, dos conflitos e da necessidade de planejamento e gestão territorialmente integrados e democráticos. Cidades pequenas apresentam mais dificuldades em termos de carência de estrutura institucional, recursos humanos e financeiros. Além disso, do ponto de vista político, as cidades pequenas apresentam especificidades que também devem ser consideradas, como por exemplo, sua baixa representatividade e capacidade de articulação econômica no contexto nacional e regional. Já cidades médias em sua maioria cumprem – ou podem vir a cumprir – um papel fundamental na possibilidade de ainda se produzir cidades inclusivas e sustentáveis.