A água é essencial para a cidade – o espaço da vida da maioria da população mundial. Em edifícios, ruas, praças, parques, na paisagem e no território. É óbvio que a água é essencial para a vida na Terra, mas devemos nos lembrar da impossibilidade de existir economia sem água. A quantidade total de água do planeta não necessariamente é reduzida ou aumentada, mas sua disponibilidade física, estado, localização e seus custos de obtenção vêm mudando substancialmente desde o século XIX.
O Dia Mundial da Água, 22 de março, foi instituído nos anos 1990 pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientização, promoção de debates e discussão sobre a preservação da qualidade, a conservação e as políticas da água no mundo, em relação estrita com a Agenda 21, definida no Rio de Janeiro em 1992. A agenda da água é política, portanto.
Nós arquitetos e urbanistas devemos nos envolver nesta reflexão e principalmente na qualificação profissional e na ação. A omissão e a alienação deste processo já estão nos custando caro, dramaticamente, em todas as frentes; empresariais, profissionais, técnico-científicas, ambientais, institucionais, sanitárias, culturais, sociopolíticas. A água é um dos insumos mais importantes da cadeia produtiva da construção civil, independente do sistema construtivo e da tecnologia adotada, mesmo que alguns sistemas e técnicas representem menor consumo imediato. O consumo de água é parte definitiva da cadeia produtiva do concreto, e o cimento, associado, nos sinaliza a necessidade da água como diluente, catalisador, sulfactante, etc. Em síntese, a degradação das fontes de água eleva o custo de sua obtenção, reiteradamente, o que onera a própria indústria, seus produtos e preços finais.
Mesmo se adotássemos, no Brasil, sistemas construtivos industrializados e tecnologicamente mais intensivos, de modo mais amplo, continuaríamos dependentes da disponibilidade, qualidade, quantidade e custo razoável da água como fator definitivo. Isto nos irmana com as Engenharias, com as Geociências, as Ciências da Vida, enfim, com o pacto ético em torno da vida humana e o papel do conhecimento como forma de pensar a existência e melhorar as condições de vida das gerações. Soluções precárias, de curto prazo, como a obtenção de água urbana tratada sem medição por hidrômetro e pagamento mediante custo subestimado, ou perfuração irregular de poços, para uso da água em obra civil, representam mera irresponsabilidade, passível de notificação e punição. A contaminação e o aumento do custo da água potável urbana, inclusive, estão relacionados.
Para nós, arquitetos e urbanistas, a água e seu tratamento responsável não consistem apenas no senso comum do uso parcimonioso, sem desperdício quantitativo, no estabelecimento de cobranças de tarifas, taxas e outorgas para que, mediante um preço, supostamente os agentes se comportem melhor porque lhes doi o bolso. Esta compreensão é reducionista, simplória, conservadora e, finalmente, ineficaz.
O acesso à água, no caso das nossas cidades, deve ser franco e aberto, e a água, de qualidade. Falemos em chavões, como o péssimo “não há almoço grátis”; nunca se tratou disso, em nenhum fenômeno do mundo contemporâneo inteiro. Trata-se de justiça distributiva; os maiores consumidores de água do planeta são as grandes atividades agropecuárias tecnificadas e a geração de energia de base térmica e nuclear. O consumo urbano de água, relevante em termos qualitativos, é minoritário em termos quantitativos, mas potencialmente contaminante, o que demanda muita gestão territorial e responsabilidade.
As atividades devem entender o uso da água em termos amplos, das bacias e regiões hidrográficas como um todo, reforçando evidentemente a necessidade de uma política ambiental nacional, estadual e municipal fortalecida e estruturada, e não da panaceia da desregulamentação que ora vivemos. Assim, domicílios não podem custear a poluição e a extração de água em grandes quantidades patrocinadas pela indústria ou pelo agronegócio.
Usos comuns da água nos dias de hoje impactam todo o ambiente construído, tendo influência notável sobre estruturas com as quais profissionais de Arquitetura e Urbanismo trabalham, em qualquer campo. Estão nos portos das cidades, promovendo articulação entre territórios, mercados, comunidades e suas economias, enfrentando as dinâmicas da modernização portuária e a redefinição das estruturas de operação dos equipamentos portuários. Estão em processo de rediscussão quanto às infraestruturas de saneamento e dos equipamentos públicos, em canais de drenagem urbana, discutidos como rios urbanos ou como meras estruturas funcionais de drenagem que, ao fim e ao cabo, colaboram com os alagamentos e a deterioração da qualidade ambiental urbana.
A água se manifesta no ambiente construído em escalas em que atuamos, e também nos fluxos de água e esgoto, na potencial contaminação pelos resíduos e por cidades que, eventualmente, possuam morfologia de parcelamento coerente ou incoerente com seu respectivo relevo, posição de rios, lago ou mar e delimitação de suas bacias hidrográficas. Por ruas e quadras que deveriam se harmonizar com a topografia do local. Pela necessidade imperiosa de abundância de áreas permeáveis e verdes nas cidades, pois hoje entende-se que a qualidade, quantidade e disponibilidade da água seja na verdade um subproduto da vegetação. Assim, a interação entre desenho da cidade, áreas públicas verdes, eficiência funcional da cidade e saúde da população moradora torna-se mais evidente.
A água também se manifesta na cidade, e também nos compete profissionalmente em compartilhamento com outras profissões, na medida em que exista um modelo de reurbanização de frentes de água pautadas pelas remoções de populações pobres e instalação de equivalentes do parque temático sobre áreas históricas nem sempre respeitadas como patrimônio cultural. Como produzi-las de modo socialmente responsável. Finalmente, estamos relacionados às equipes multidisciplinares que fazem planejamento e gestão do território e, assim, da água na paisagem.
Nossas especificações de materiais e técnicas repercutem em impactos ambientais significativos, em termos do consumo de energia e água das tecnologias de estruturas, vedações, cobertura, revestimentos, fundações. Determinados materiais e indústrias, incluindo aqueles que se autodeclaram alguma coisa misteriosa como sustentáveis, possuem processos de produção altamente impactantes e poluentes. Nisto também reside uma responsabilidade, porém não individualizada apenas na figura do projetista, mas que demanda que entidades ligadas à profissão, e este Conselho de Arquitetura e Urbanismo, atuem como agentes de pressão por melhorias, responsabilidade e coerência. Isto é particularmente grave em um momento como o atual, no país, em que medidas governamentais de restrição ao saneamento básico e público são vendidas como se fossem solução para o setor.
Os locais de assentamento da maioria da população do mundo, cidades, vilas e similares, estão em sua grande maioria situados nas proximidades de rios, lagos ou mares. A maioria das plantas industriais do planeta acompanha estas localizações. Profissionais de Arquitetura e Urbanismo e nosso Conselho possuem hoje responsabilidade e demanda por uma reflexão e pelo reconhecimento da importância da questão ambiental no Brasil. Isto deve ser feito apesar dos discursos correntes de retrocesso, de violência, da ilusão de que manter o ambiente sadio e digno impedirá a economia de crescer.
Nossa profissão é historicamente progressista, caracterizada pelo arrojo, pelo interesse e pela curiosidade pela inovação e pelas soluções de ponta. Neste Dia Mundial da Água é possível, assim, considerar que profissionais de Arquitetura e Urbanismo sejam ponta de lança neste país para a revisão de cidades, edifícios, regiões e paisagens de ambiente sadio, produtivo, dinamicamente equilibrado e socialmente justo. Nosso ofício, como alguns poucos, nos permite esta leitura e esta compreensão. Sejamos esta força, portanto.
Por Juliano Pamplona Ximenes Ponte, conselheiro do CAU/BR