Moradia Digna

Dignidade e direito à moradia retirados com as remoções forçadas

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Mais de 1,5 milhão de brasileiros foram despejados ou tiveram remoções forçadas de suas casas nos últimos 20 meses. Levantamento da Campanha Nacional Despejo Zero expôs a falta de uma política habitacional capaz de acomodar essas famílias mesmo em meio a um governo alinhado às pautas sociais. Pior ainda é a verificação de supressão às comunidades, uma vez que a pesquisa identificou 25 projetos de lei em tramitação nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional que buscam penalizar ocupantes de propriedades públicas e privadas com medidas como multas, proibição de participação em concursos públicos e exclusão de programas sociais.

A violação do direito à permanência da população de baixa renda em suas áreas originais de moradia é preocupação da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), entidade que defende a bandeira da dignidade e segurança e limites claros à saída coerciva das moradias. “Negar o direito à moradia a alguém é negar um direito básico, humano. É punir a população já vulnerável com a retirada de seu teto e de seu chão e não podemos permitir que este tipo de penalidade atinja à nossa sociedade. Temos compromisso com a classe trabalhadora e seguiremos denunciando e cobrando das autoridades ações efetivas contra a retirada e violação de direitos”, ressalta Andréa dos Santos, presidente da FNA.

As remoções forçadas podem ocorrer de diferentes formas. Geralmente, são realizadas de forma judicial, por reintegrações de posse, ou administrativa, quando obras e intervenções urbanas exigem realização de comunidades. Há casos também em que a falta de inclusão social e de políticas para os menos favorecidos responde por parte dessa exclusão indireta, a chamada gentrificação. “Não haver oferta de escolas públicas, creches e postos de saúde públicos em algumas regiões das cidades também são fatores de exclusão e remoção indireta”, diz Andréa.

Boa parte das remoções são resultado de intervenções urbanas, grandes obras, ações judiciais de reintegração de posse e conflitos fundiários. O problema é que tais ações se direcionam a famílias de baixa renda ou grupos sociais vulnerabilizados que não somente necessitam, mas demandam a garantia do direito à moradia. Esse ataque também se direciona a um perfil socioeconômico claro. Segundo o levantamento da Campanha Despejo Zero, as remoções atingem majoritariamente pessoas negras (pretas e pardas), mulheres chefes de família e que ganham até dois salários mínimos. Os dados indicam também ofensiva sobre crianças e idosos.

Isso significa uma clara relação entre a luta pela terra e a pobreza, cujos aspectos caracterizam violações de direitos à cidade e direitos humanos. A falta de acesso à informação e diálogo com as comunidades, notificações de despejo com prazos curtos ou imediatos, reassentamentos em áreas distantes dos centros urbanos e/ou em locais inadequados aprofundam desigualdades. Logo, cabe ao poder público defender políticas habitacionais que possibilitem a mediação de conflitos fundiários e devolvam a dignidade das famílias atingidas.

As políticas brasileiras de habitação carecem da participação de equipes multidisciplinares, composta por arquitetos e urbanistas, assistentes sociais, profissionais do Direito, entre outros. “Vamos seguir lutando para que todas as pessoas possam morar dignamente e reforçar a necessidade de implementação de políticas públicas que venham em favor do fortalecimento das comunidades, como a Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), nesses espaços”, acrescenta a presidente da Federação.

A consciência sobre a participação dos arquitetos nessa luta também é tratada pela arquiteta e urbanista no Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES) e no Arquitetura Humana, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Karla Moroso. “Os arquitetos e urbanistas precisam primeiro reconhecer que têm um compromisso com o interesse público, que inclusive está lá no nosso Código de Ética. Os profissionais e a sociedade desconhecem que arquitetos e urbanistas têm um papel importante na construção política nos espaços institucionais: no governo federal, governo do Estado, nos governos municipais, nas agências de pesquisa. Isto é, ocupar espaços para poder propor, não apenas cobrar por políticas habitacionais, mas ajudar a construí-las”.

A presidente da FNA também ressalta que é fundamental garantir a participação popular nesse debate. Ela lembra a nota conjunta “Uma Questão Humanitária”, apelo pela suspensão de mandados de reintegração de posse durante a pandemia de Covid-19 e integração à campanha Despejo Zero, junto ao Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), ao Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e outras entidades.

Para o advogado do CDES, Cristiano Müller, “as políticas habitacionais são fundamentais na perspectiva de garantia de direitos humanos das populações vulneráveis que vivem em áreas de risco nas cidades, e não só na garantia de moradia, mas também na proteção da vida e da integridade física de seus moradores. O motivo da ocupação dessas áreas tem a ver com a falta completa de produção de habitação de interesse social”.

Enquanto profissional do Direito, Müller vê na não indenização de moradores removidos e despejados, uma consequência visível dessas ações, uma violação de direitos humanos que compõe a ação de despejo. Tanto ela como a remoção são realizadas com base num em um sistema que as legitimam e que está fundada na proteção da propriedade privada.

“É preciso confrontar tal sistema com a necessidade de garantias humanitárias para os atingidos, promoção da dignidade humana e proteção das populações vulneráveis, entre outras. Somente aí é possível abrir espaço para indenizações aos atingidos por um despejo, a partir de uma racionalidade de direitos humanos”, ressalta.

Para frear tais ações hostis de despejos, surge a necessidade de criar espaços fixos de mediação para que haja diálogo com as comunidades afetadas, como conclui Karla. “O que conseguimos, com muita luta, estamos tentando estruturar junto ao governo, ao poder executivo, ao judiciário e legislativo também, é de tentar consolidar um espaço de respiro, de mediação desses conflitos, onde essas comunidades possam ser ouvidas, onde a gente possa dizer ‘Olha, essas famílias precisam morar em algum lugar, se elas estão em lugares inadequados ou se elas estão morando em ocupações, é porque não há moradia acessível para essas famílias, muito embora a Constituição garanta moradia como direito social”.

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