ARQUITETURA E SAÚDE

Direito a cidade e moradia amplia garantias de saúde, afirma sanitarista Ion de Andrade

Em entrevista, médico epidemiologista e integrante da articulação BR Cidades defende a presença de arquitetos e urbanistas em equipes de saúde  

 

Programa Nenhuma Casa sem Banheiro, do CAU/RS, promove melhorias sanitárias em moradias gaúchas

 

Associada às políticas de saúde, a arquitetura e urbanismo contribui para uma cultura de prevenir doenças, e não apenas tratá-las. O conceito que não é novidade para os arquitetos e urbanistas vem ganhando força entre os sanitaristas. Em entrevista publicada no site Outras Palavras, o médico epidemiologista da Escola de Saúde Pública do RN Ion de Andrade defendeu propostas como a inclusão de arquitetos e urbanistas nas equipes de Saúde da Família para que o SUS avance de uma perspectiva curativista para a preventiva. 

 

Na entrevista, Ian de Andrade, que é colaborador da articulação nacional BR Cidades e membro da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), detalha as condições sociais e sanitárias que relacionam a moradia e a saúde. “Há uma série de desvantagens sociais que dizem respeito à moradia. Más condições de saneamento, precariedade do abastecimento de água e do esgotamento, más condições do material construtivo que permite a incidência de insetos etc”, disse.  “A ideia é que urbanista e o arquiteto (sic) estariam atentos a essas pequenas reformas na casa das famílias que podem fazer a diferença entre saúde e doença, que acontecem no contexto das comunidades”, completou, citando o exemplo do projeto “Nenhuma casa sem banheiro”, do CAU/RS.

 

Segundo o sanitarista, o SUS precisa ampliar o seu escopo de atuação para abranger todas as premissas do conceito de saúde definido pela Organização Mundial da Saúde. “É uma necessidade para o SUS virar a página e tentar construir um modelo de atenção que possa cuidar do último elo do conceito da saúde, que é o bem-estar social. E isso coincide também com as aspirações do direito à cidade”, afirma.

 

Na matéria que leva o título “Como reconstruir a Saúde a partir do espaço urbano”, a jornalista Gabriela Leite faz alusão à Rede Inclusão e Direito à Cidade, ligada ao BR Cidades, como articuladora de proposta inovadora para o SUS. A rede sugere a criação de um grupo de trabalho entre os ministérios da Saúde e das Cidades para viabilizar a associação das políticas.

 

As ideias dialogam com as apresentadas pelo CAU Brasil ao grupo de transição do Governo Federal e que sintetizam ideias expressas desde a Carta aos Candidatos e Candidatas nas Eleições 2022. Entre elas, está a criação do Sistema Unificado de Cidades (SUC), um módulo para requalificação dos espaços urbanos que integra políticas setoriais de Mobilidade, Meio Ambiente e Habitação em articulação com o SUS. 

 

Leia a matéria e a entrevista na íntegra abaixo:

 

COMO RECONSTRUIR A SAÚDE A PARTIR DO ESPAÇO URBANO

 

Articulação rara entre pensadores da Saúde e do Urbanismo constrói proposta inovadora para o SUS. Inclui a presença de arquitetos nas Equipes de Saúde da Família e a noção de que casas dignas são essenciais para uma sociedade saudável

 

Em um contexto em que há espaço aberto para a discussão da reconstrução do país, a partir do futuro governo Lula, sanitaristas e urbanistas se uniram para entregar um documento com propostas ao grupo de transição do ministério da Saúde. A confluência se dá sobretudo a partir do reconhecimento da similaridade entre dois conceitos, um de cada área: o direito à cidade e o bem-estar social, explica Ion de Andrade, médico epidemiologista da Escola de Saúde Pública do RN. Ele também é colaborador do BR Cidades, uma articulação nacional em defesa de uma nova política urbana, e membro da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD).

 

Uma das ideias principais do documento é a inclusão de arquitetos nas equipes de Saúde da Família, atualmente compostas por um médico, enfermeiros e técnicos de enfermagem e agentes de saúde que atendem até 4 mil pessoas em  determinado território, operando como a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, uma parcela considerável dos problemas sanitários (e sociais)  não podem ser solucionados apenas por profissionais da saúde como, por exemplo,  as condições precárias de moradia de milhares de famílias brasileiras, especialmente nas periferias. 

 

“De fato, más condições de moradia, insalubridade, carência de banheiros, dentre outras, provocam problemas de saúde que se repetem independentemente da ação do SUS – dengue, tuberculose, doenças respiratórias, doenças diarreicas, entre tantas outras,  ilustram continuamente essa realidade”, descreve o documento. Entraria aí, portanto, o papel do arquiteto social: realizar um diagnóstico da situação dos lares brasileiros e propor as intervenções físicas necessárias através da chamada Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS). A incorporação destes profissionais nas equipes de Saúde da Família poderia garantir o que se chama de Casa Saudável. Outra reivindicação urgente, que traria enormes melhorias à saúde dos mais vulneráveis, é a proposta de “Nenhuma casa sem banheiro” – de acordo com o IBGE,  5 milhões de pessoas no Brasil não têm sanitário em suas residências.

 

Outra função importante dos arquitetos no SUS, destaca o documento elaborado pelos pesquisadores, é repensar as instalações dos equipamentos de saúde, “para a assegurar: a) a qualidade das instalações dos seus dispositivos de saúde, muitos dos quais com graus variados de precariedade; e b) a adequação das unidades de saúde, às necessidades de ventilação e proteção aos riscos ambientais”.

 

Porém, essas ações podem ser insuficientes:  é preciso encarar que a vida comunitária também passa pelo respeito à saúde – e que as cidades estão cada vez mais inóspitas a seus habitantes. Ion reflete: “O Sistema Único de Saúde incorpora o conceito de saúde elaborado pela Organização Mundial da Saúde, que indica a necessidade de bem-estar físico, mental e social. Acontece que o bem-estar social está fora da governabilidade do SUS. Ele é remetido aos ministérios sociais, ao ministério das Cidades e a políticas de renda”.

 

Para fazer uma transformação nas cidades de maneira que sejam capazes de gerar o bem-estar social necessário para a garantia da saúde, Ion e pesquisadores parceiros projetaram o Rede Inclusão, projeto descrito por eles em artigo do Outras Palavras. Trata-se de construir equipamentos sociais regionais, que atendam à população de uma comunidade ou bairro, o que é perfeitamente viável: custaria apenas 0,3% do orçamento total da União, segundo os moldes estabelecidos – bem menos que custosas obras viárias, por exemplo. E poderia contribuir para uma possível revolução social na vida dos mais vulneráveis.

 

“É por isso que a gente constata que o Brasil é um país injusto, porque já poderia fazer muito mais e não faz. O que eu acho que é interessante nessa nossa reflexão é que ela expõe a clareza orçamentária. ou seja, o quanto é irrisório fazer o que deveria ser feito e que impacto social isso poderia ter do ponto de vista não só da saúde, da construção de uma uma virada na sociedade”, defende Ion.

 

Fique com a entrevista completa:

 

Gostaria que você explicasse melhor a proposta de ter arquitetos nas equipes de Saúde da Família.

 

Essa é uma ideia muito importante porque há uma série de desvantagens sociais que dizem respeito à moradia. Más condições de saneamento, precariedade do abastecimento de água e do esgotamento, más condições do material construtivo que permite a incidência de insetos etc. Portanto, as funções de moradia são muito importantes na questão da saúde pública.

 

A proposta do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul está focada na bandeira de “nenhuma casa sem banheiro”, é um dos eixos da luta deles. Nós incorporamos essa proposta. Vale dizer que essa não é uma novidade para a saúde pública no Brasil. Mas essa pauta e outras estão sendo retomadas e podem ser construídas em outras bases.

 

Uma delas é a presença do urbanista na equipe da Estratégia de Saúde da Família. A ideia é que urbanista e o arquiteto estariam atentos a essas pequenas reformas na casa das famílias que podem fazer a diferença entre saúde e doença, que acontecem no contexto das comunidades.

 

A título de comparação, o SUS já tem procedimentos inclusive rotineiros muito mais caros do que seriam essas pequenas reformas. Nas áreas cirúrgica, hospitalar e ambulatorial, por exemplo, se paga o material e os honorários. Portanto, o formato não é uma novidade para o SUS, a novidade é o objeto.  Essas similaridades poderiam ajudar a dar andamento à proposta. Só que isso não deve ser feito com recursos assistenciais, mas com novos recursos. Você não pode tirar de uma área que já está com pouco recurso para aplicar em outro, correto? Portanto, tem que ter novos recursos, mas o formato é possível.

 

Fale sobre o Modelo de Atenção para o Bem-Estar Social

 

O outro elemento que contextualizamos no documento é a ideia do do Modelo de Atenção para o Bem-Estar Social. O vídeo de Barcelona [assista abaixo] é um bom exemplo porque ele exprime de maneira muito clara o que a gente está falando. Esse modelo evoluiu de um modelo de atenção curativista para um modelo de atenção para vigilância ou para promoção da saúde. Deixa de ser simplesmente curativista. 

 

 

O SUS já desenvolve uma série de programas: contra hipertensão e diabetes, pré-natal, crescimento e desenvolvimento das crianças, imunização. O Sistema Único de Saúde incorpora o conceito de saúde elaborado pela Organização Mundial da Saúde, que indica a necessidade de bem-estar físico, mental e social. Acontece que o bem-estar social está fora da governabilidade do SUS. Ele é remetido aos ministérios sociais, ao ministério das Cidades e a políticas de renda. Portanto isso fica fora do escopo da tomada de iniciativa do SUS

.

Com isso, a gente vai construindo um um cenário de saúde que é incapaz de dar conta do que propõe a Organização Mundial da Saúde. Porque o Brasil como um todo não tem buscado o bem-estar social. 

 

Veja a questão da saúde mental, por exemplo. Hoje, inclusive em muitas Unidades Básicas de Saúde, a demanda principal diz respeito à saúde mental. Isso foi potencializado pela pandemia, tem uma onda de problemas como depressão, angústia, etc. Qual é o modelo de atenção que pode dar conta da questão da saúde mental? Tem que ser o do bem-estar social.

 

Aquilo que na saúde a gente enxerga como bem-estar social, os urbanistas têm enxergado como direito à cidade. Estamos trabalhando com conceitos muito próximos, tanto na saúde quanto no urbanismo, mas precisamos unir forças para que isso se materialize. E essa ideia da Casa Saudável, nenhuma casa sem banheiro, no Brasil tem que estar ambientado num novo modelo de atenção. Senão vamos ficar paralisados nos cuidados das questões de sobrevivência.

 

E isso vai prender o Brasil a uma situação de subdesenvolvimento. Temos que começar a pensar em virar a página. É uma necessidade para o SUS virar a página e tentar construir um modelo de atenção que possa cuidar do último elo do conceito da saúde, que é o bem-estar social. E isso coincide também com as aspirações do direito à cidade. A gente tem que cuidar de coisas muito elementares, embora muito importantes, como as casas com banheiro. Mas temos que dar o passo seguinte, porque o problema não vai se resolver só assim.

 

Essa foi a ideia da proposta apresentada ao ministério da Saúde, mas também foram enviadas algumas ao ministério das Cidades. Tentamos estabelecer essa ponte. É uma ideia-força que pode ser construída pelas duas pastas, porque interessa ao SUS as medidas para o bem-estar social. Está em seu conceito. 

 

Como seria viabilizado?

 

No artigo, nós propomos a criação de um grupo de trabalho entre os dois ministérios. Outra coisa que o SUS pode compartilhar é a experiência que tem na gestão das redes assistenciais. O que são as redes assistenciais? Por exemplo, vamos pensar na rede de urgência. O que tem na rede de urgência? Os hospitais, os pronto-socorros, o Samu, as UPAs. Portanto, há uma rede assistencial na área de urgências, e ela é territorial. O SUS pode emprestar essa experiência para os projetos que digam respeito às comunidades, aos bairros.

 

A maneira com que são tomadas as decisões para aprovação desses projetos também pode servir como inspiração. Precisamos de uma rede de equipamentos sociais que construam o bem-estar social. Já temos redes de equipamentos de saúde, que estão na esfera da construção do acesso à saúde. A rede cegonha, por exemplo, com as maternidades, as redes de Atenção Básica. 

 

De que forma essas mudanças poderiam ser financiadas?

 

Quando você divide a população em territórios, o custo se torna visível. Vou fazer um paralelo. Uma Equipe de Saúde da Família atende quatro mil pessoas, certo? Essa equipe tem vocação universalista, portanto poderia atender a população brasileira como um todo. É composta por um médico, uma enfermeira, quatro ou cinco agentes comunitários de saúde, duas técnicas de enfermagem e um dentista. Para além do assalariamento dessa equipe, tem custos com logística, insumos, equipamentos para guardar vacinas, enfim. Toda uma uma uma série de custos que não são baixos. 

 

A unidade territorial que nós propomos na Rede Inclusão comportaria vinte mil habitantes, categorizados entre os 30% mais pobres da população. São 70 milhões de pessoas nessa situação mais vulnerável, portanto teríamos 3,5 mil unidades populacionais com 20 mil habitantes. Se forem atribuídos R$ 2 milhões a cada uma delas, é possível construir um equipamento social de mil metros quadrados. Seriam, então, R$ 7 bilhões por ano. Isso corresponde a 0,3% do Orçamento Geral da União – isso sem contar a parte que vai para o pagamento da dívida pública. Esse documento detalha mais a questão orçamentária.

 

Vou dar o exemplo da cidade de Natal (RN), que não é das mais ricas do país. Ela tem 900 mil habitantes, portanto haveria 300 mil no grupo das mais vulneráveis. Isso representa 15 unidades de 20 mil habitantes. Geraria um custo anual, para a cidade, de R$ 30 milhões; sendo R$ 2 milhões para cada uma das unidades. Isso, em Natal, corresponde a 0,6% do orçamento municipal. 

 

Ou seja, por que o Brasil não faz o que está proposto ali no vídeo sobre Barcelona? Muito mais por uma questão de cultura política da exclusão social do que por falta de recursos. É por isso que a gente constata que o Brasil é um país injusto, porque já poderia fazer muito mais e não faz. O que eu acho que é interessante nessa nossa reflexão é que ela expõe a clareza orçamentária. ou seja, o quanto é irrisório fazer o que deveria ser feito e que impacto social isso poderia ter do ponto de vista não só da saúde, da construção de uma uma virada na sociedade. Então não basta focar na Casa Saudável, na construção de banheiros, isso tem que ser ambientado com a mudança do modelo de atenção.

 

Você acredita que essas ideias terão espaço para prosperar no futuro governo Lula?

 

Veja, nós estamos num momento de disputa. Eu acho que o governo Lula deu um bom passo com a criação de uma secretaria no ministério das Cidades voltada às periferias. É uma excelente notícia. Isso dialoga com essa proposta porque vai significar a construção de políticas integradas nas periferias. Mas o ministério das Cidades é estratégico para a construção dessa virada, do ponto de vista da do direito à cidade, que nós na saúde compreendemos como bem-estar social. É o último elo do processo saúde-doença que está fora da governabilidade do SUS.

 

*Trabalho foi desenvolvido no âmbito da ação dos componentes curriculares A e B, do curso de arquitetura da UFRN, bem como da ação de extensão C da UFRN, em parceria com a Rede e Inclusão.

 

Acesse a publicação original no site Outras Palavras

 

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