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“Em busca da cidadania esquecida”- Artigo de Luiz Fernando Janot

O contraste entre os espaços legalmente construídos e os informalmente ocupados revela um processo de exclusão social presente em nossas cidades há muitos anos. É verdade que outras nações também convivem com estados semelhantes de discriminação, algumas vezes mais acentuados. Na Índia, por exemplo, um terço da população nasce, vive e morre nas ruas.

 

A alternativa encontrada pelas camadas mais pobres da população brasileira para escapar desse estigma cruel foi construir barracos em áreas devolutas da cidade. Não há dúvida de que essa forma de ocupação do solo tenderá a se expandir se as classes menos favorecidas não tiverem meios para superar o abismo social e econômico que as confinam nesses precários territórios.

 

Costumamos enaltecer a importância da cidadania e da qualidade de vida na Europa. No Brasil, parece que trilhamos o caminho oposto. Para o geógrafo Milton Santos, “em um país como o nosso, onde a figura do cidadão é tão esquecida, cabem, pelo menos, duas perguntas: – quantos habitantes são cidadãos de fato? E quantos nem sequer sabem que não o são?” Esse dilema mostra com clareza a origem de alguns desacertos da nossa estrutura social.

 

No Rio de Janeiro, a concentração da pobreza não se restringe às áreas periféricas como acontece na maioria das cidades pelo mundo afora. A ocupação informal de morros e margens de rios se tornou uma parte indissociável dos bairros cariocas desde o início do século passado. Na medida em que as facções criminosas encontraram nesses territórios o lócus ideal para implantar os seus rentáveis negócios, outros tipos de crime começaram a ser praticados simultaneamente. A relação promíscua com a banda podre da polícia estimulou a formação de milícias poderosas.

 

Aproveitando-se do vácuo existente na segurança pública, difundiu-se a ideia de que a segurança privada poderia ser uma alternativa viável para suprir a ineficiência do poder público. Em paralelo, setores do mercado imobiliário adotaram os grandes condomínios residenciais fechados como paradigma para suas incorporações. No contraponto dessa tendência, a professora Beatriz Jaguaribe afirma que ”a aceitação desses condomínios vem coroar uma atitude antiurbana que busca o refúgio do privado contra a incursão da urbe descontrolada”.

 

A Barra da Tijuca foi precursora deste tipo de moradia no Rio de Janeiro. Pelos idos dos anos oitenta, o urbanista Lucio Costa, preocupado com o desvirtuamento do seu plano-piloto para essa região, reagiu à obsessão dos incorporadores em adotar esse modelo de condomínio residencial. Considerava que eles seriam, no futuro, responsáveis pelo enfraquecimento das relações sociais nos espaços públicos.

 

Não há dúvida de que a insegurança contribuiu para a disseminação de soluções urbanísticas e arquitetônicas baseadas no medo. Vemos grades cercando residências e edifícios, muros encimados por cercas aramadas ou eletrificadas e câmeras sofisticadas transmitindo uma aparência de segurança.

 

Seguindo essa tendência, a Câmara Municipal do Rio aprovou recentemente uma lei que facilita a instalação de guaritas e cancelas para controlar o acesso de pessoas a algumas ruas da cidade. Estabelece-se, dessa forma, mais um fator para estimular a privatização dos espaços públicos.

 

A banalização da violência leva a população do Rio a se sentir ameaçada permanentemente. O medo dos bandidos, associado à desconfiança dos policiais, afeta consideravelmente o comportamento das pessoas e a vida na cidade. Em meio ao fogo cruzado, o Estado parece apático e alheio aos interesses maiores da sociedade.

 

Em consequência, abre-se um espaço perigoso para a prática de um individualismo exacerbado que põe a cidadania de lado e reduz os valores da sociedade a uma mera insignificância. Para não assistirmos a dissolução das relações sociais será necessário reverter o atual quadro de anomia, através da implementação de políticas públicas que valorizem efetivamente a cidadania e possibilitem a interação social na cidade.

 

Fonte: O Globo

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