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Ensinamentos de Severiano Mário Porto – avô e arquiteto

Severiano e a esposa Gilda

 

Foi na primeira semana de aula que um professor me parou para perguntar se eu era neta de Severiano Porto. Respondi que sim e ele, entusiasmado, disse que conhecera meu avô e que tinha muito apreço por seu trabalho.Poucos anos antes de entrar para a faculdade de arquitetura, eu havia esbarrado em um livro que o citava como um dos grandes arquitetos contemporâneos do Brasil, mas pouco sabia sobre o assunto.

 

 

Meus avós, Severiano e Gilda, sempre foram pessoas muito simples. Seu apartamento em Niterói era decorado com móveis modernistas de madeira e poucos ornamentos. Ele vivia indo e vindo de Manaus para o Rio, e trabalhava muito, mas a magnitude de suas obras nunca fora discutida pela família nos almoços de domingo.

 

 

Não escolhi ser arquiteta por seu trabalho. Na verdade, me recordo de muito pequena indo visitá-lo em seu escritório na Rio Branco. Era véspera de entrega e um grupo se debruçava sobre a prancheta, repleta de plantas que caiam pelo chão. Fiquei tão confusa com aqueles papéis gigantes e o clima tenso que prometi a mim mesma que nunca seria arquiteta. Mas essa promessa eu não pude manter.

 

 

Com o passar dos anos de curso, fui compreendendo seu papel na arquitetura brasileira. No início, tentava esconder o fato de ser sua neta, com medo das expectativas e de ficar apagada sob sua sombra. Ao longo do tempo, fui timidamente estudando suas obras e, mais recentemente, oportunidades surgiram para que eu o representasse em premiações.

 

 

O primeiro contato concreto que tive com seu trabalho foi em 2011 para a entrega da Comenda de Professor Emérito à Severiano, pela UFAM. Era necessário elaborar um discurso, mas escrever baseado em fotografias antigas e textos me soou muito superficial. Voei alguns dias antes para Manaus, a fim de conhecer pessoalmente o que ainda restava de suas obras. E foi então que me apaixonei. Seu trabalho era realmente fantástico e  impossível de compreender através de intermediários. Era necessários estar lá para deslumbrar as diversas interações do objeto construído com o meio e absorver todos aqueles detalhes em madeira que ampliavam o grau de complexidade de suas obras, em diversas escalas.

 

 

Visitei alguns projetos bem conservados, como a sede da SUFRAMA, o banco BASA e residências no Condomínio na Rua Recife. Percebi o quanto ele era reconhecido na cidade, não apenas por outros arquitetos, mas por cidadãos comuns e isto me fez perceber sua relevância na construção da identidade de Manaus. Ainda pretendo visitar algumas de suas grandes obras, como a Aldeia SOS, Balbina e o Hotel de Silves, embora saiba que muitas delas estão degradadas ou sofreram grandes intervenções. Entretanto, o projeto da UFAM constituiu uma amostra significativa do seu potencial arquitetônico, capaz de me transformar completamente.

 

 

Ao pisar na Universidade Federal do Amazonas percebi o significado do termo “diálogo com a natureza”. Ao contrário do que se possa pensar, esta obra não trata de uma arquitetura orgânica de madeira, mas sim de um projeto com estrutura pré-moldada em concreto, formando blocos retangulares que se conectam através de caminhos cobertos por telhados de fibrocimento. Mas, mesmo nas linhas retas e racionais, Severiano conseguiu “abraçar” a floresta intimamente. O intervalo entre elementos edificados é livre, permitindo à mata espontaneidade na ocupação. O uso da ventilação cruzada garante conforto térmico ao edifício, contrastando com o calor da cidade e nos remetendo a sensação de estar imerso na floresta amazônica.

 

Da esquerda para a direita: Paula; o pai, Mário; a mãe Rosane; a avó Gilda (esposa do Severiano); Gladis (avó de Paula por parte de mãe) e Yedda (prima); e Severiano. Foto tirada em casa de Niterói (RJ), último projeto feito por Severiano.

 

 

Este exemplar muito me fez refletir sobre a vida. Tenho como herança de família, um enorme contato com a natureza, desde muito pequena. Mas até então, não sabia como trabalhar com isto. Ao observar como Severiano conseguiu estabelecer diálogos tão intensos entre objeto construído e sítio, pude compreender a riqueza do que ele me deixou. Foi meu pai quem me ensinou o significado de contemplação mas meu avô foi quem me fez ver além.

 

 

Nos olhos de Severiano, o relevo que abraça uma cidade não é apenas paisagem. É um delimitador de visão, gerando linhas que resultam em uma linguagem própria. Severiano era um observador nato e cada movimento da natureza, o vento, a chuva, o sol, lhe inspirava. E é desta inspiração que nasce sua arte. Além de arquiteto, era músico e fotográfo e sabia apreciar muito bem a simplicidade da vida.E era ingenuamente engraçado, pois falava com leveza o que nem todos conseguiam ver.

 

 

Seu potencial criativo aparece em cada ato cotidiano, seja na decoração dos imas de geladeira de sua casa, que sempre nos contava uma história diferente ou nas colagens inusitadas de suas fotografias. Como cidadão é um homem crítico e de ética inabalável. Severiano diagnostica problemas urbanos e luta para melhorar as cidades em que mora, além de buscar expandir os horizontes de seus alunos e desenvolver seu senso crítico.

 

 

Conviver com meu avô me ensinou a observar, pensar e sentir o mundo de forma simples e humana. Estudar o arquiteto Severiano Porto, entretanto, me fez repensar os rumos da vida sob uma nova perspectiva. Acredito que o principal ganho pessoal e profissional que ele nos acrescenta é perceber que a arquitetura, como todas as artes, sempre tem um porque, sempre tem razão, emoção e alma. E alma, é atemporal.

 

Fevereiro de 2015

Paula Carneiro Porto, arquiteta e urbanista, formada pela Universidade Federal Fluminense em 2014, e neta de Severiano Porto.

 

Publicado em 18/02/15

6 respostas

  1. Sou engenheira civil e costumo dizer q trabalhamos mais com a matemática ja os arquitetos trabalham mais com os sentimentos. Paula, em sua síntese, fala da alma, dos sentimentos expressos nas grandes obras do arquiteto Severiano Porto onde, o emprego do concreto em grandes volumes e sua mistura à outros materiais jamais deixou transparecer sua robustez mas sim a leveza dos ambientes q os insere. Cada um de seus projetos foram concebidos igualmente a qualquer outra grande orbra de artes dos mestres/artistas citados na literatura nacional ou internacional. Felizmente Manaus, mesmo que aos poucos, vem reconhecendo o grande legado deixado por Severiano Porto à esta região. Severiano Porto foi meu mestre na faculdade, meu chefe quando trabalhei em seu escritório por quatro belos anos de aprendizado constante na Ramos Ferreira e eterno exemplo de pessoa de inabalável caráter, de imensuravel profissionalismo e grandes virtudes a ser seguidos. Ao Severiano Porto minha eterna gratidão.

  2. Paula, que alegria em saber que você despertou de seu sonho e que foram necessárias duas gerações para dar continuidade ao pensamento do grande Severioto Mario Plano, como nos, os seus admiradores o chamávamos. Tive a honra de conhece-lo e foi de uma maneira inusitada. Indicado pelo Arquiteto Hugo Reis, professor de desenho de arquitetura na Escola Técnica do Amazonas, em 1970, o qual percebendo minha afinidade com desenho, recomendou-me ao Dr. Severiano. Note-se que de desenho de arquitetura eu simplesmente quase nada sabia. Ao chegar em seu escritório na Av. Joaquim Nabuco, perguntei por ele e apontaram para o andar de cima, lá chegando, deparei com ele apoiado pelo cotovelo, riscando uma obra qualquer. ao me apresentar, ele levantou os olhos por sobre os óculos e depois de me ouvir com atenção, fez uma única pergunta: – “…e quanto você quer ganhar?”
    Eu atônito por ser aceito de primeira, respondi-lhe: – Nada! …eu ainda não sei nada!, foi ai que ele disse: “Ok então começa na segunda!” Foi a partir dai que eu permaneci por lá trabalhando com ele por longos 8 anos desenhista. Depois ative o prazer de tê-lo com professor na faculdade de engenharia, a minha aptidão não se encaixava na Arquitetura com ele a praticava, eu queria apenas poder construir aquilo que eu via de lindo sair da sua karandash.

  3. Conheci Severiano hoje.Meu professor de THAU2 solicitou a pesquisa de sua vida e obra como Arquiteto.Estamos em Recife.Estou emocionada.Também um pouco destruída por ver que algumas obras foram demolidas.
    É a nossa história.
    É Manaus.
    A gente não sabe crescer!!!
    Lindo o seu texto Paula.
    Seu avô é genial!
    Severiano Porto é um homem brasileiro GRANDE!

    1. Olá Andrezza Boa tarde, sou estudante de Arquitetura e estou fazendo um trabalho sobre a obra do ”Centro de Proteção Ambiental de Balbina do Arquiteto Urbanista Severiano Porto, preciso saber da Implantação da obra no entorno imediato (norte solar e
      posicionamento das fachadas. Não consigo achar nenhuma informação na internet e só preciso desse detalhe para finalizar o trabalho que sera apresentado dia 08/10 – Quinta- Feira, se poder me ajuda com alguma informação eu o agradeço, e se alguém que ler a minha publicação e poder ajudar eu fico grata!!

      Att,
      Vanda

  4. Paula, é imenso o sentimento de paz e alegria que seu texto e os demais comentários sobre Severiano me trazem. Aos 76 anos, vez por outra me atrevo a colocar nos pratos de uma balança as pessoas e passagens de minha vida. Pessoas como seus bisavós,avós,seus pais e você aumentam tremendamente o peso sobre o prato em que estão as razões que fazem meu viver ter valido a pena.

  5. Paula, você certamente não me conhece, mas eu tive a ventura de conviver intimamente com seus avós, e com o seu pai, Mário, quando ele era um garoto de 10 anos. Ele também não se lembra de mim, com certeza. Seus avós são meus compadres, pois dei minha primeira filha, Adriana, hoje morando nos EUA, para batizar.
    Conheci Sevê – era assim que o chamávamos – em Manaus, quando eu, militar do Exército, comandava a PM do estado.
    Perdi contato com Sevê e com Gilda, mas gostaria muito de restabelece-lo, de alguma forma. Moro em Niteroi, em Itaipu. Meu telefone é 3610-0110 e não tenho celular.
    Soube por alguém que a saúde de seu avô está precária, mas não obtive confirmação disso.
    Sou um admirador entusiasta do casal, da inteligência de Gilda e da incrível sensibilidade de seu avô. Não me canso de falar sobre suas obras. Frequentava com certa assiduidade (todos os fins de semana) a magnífica casa do casal em Manaus, toda de madeira, ventilação cruzada, essas coisas que você conhece melhor do que eu (que me limitava a curtir apenas).
    Paula, não sou um milico padrão, desses que talvez vc possa estar acostumada a ver na descrição da mídia, de forma que pode conversar comigo desancando o cacete no regime militar. Eu assimilo bem essas coisas. Tenho 82 anos.
    Um forte abraço, foi um prazer sabe-la existir. Mande, por favor, um forte abraço para seus pais e avós.
    Hernani

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