A cada vinte anos, desde 1976, a ONU promove a Habitat, conferência internacional para discutir e propor diretrizes para as questões de habitação e desenvolvimento sustentável das cidades. A primeira foi em Vancouver (Canadá); a segunda, em 1996, ocorreu em Istambul (Turquia). A Habitat III , em outubro próximo, será realizada em Quito (Equador), primeira cidade declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, em 1978, por ter o centro histórico melhor conservado e menos alterado de toda América Latina.
A escolha não deixa de ser emblemática. Cercada por vulcões ativos e frequentemente ameaçada por terremotos, a sobrevivência de Quito é tão paradoxal como a de tantas outras cidades mundo afora. Em especial as metrópoles e as cidades de sua constelação, marcadas por problemas de mobilidade, déficit habitacional, infraestrutura insuficiente, segregações sociais, alto consumo de energia, escassez de água, especulação imobiliária, serviços de saúde e educação excludentes, crescente trabalho informal, problemas ambientais e planejamento intermitente. O enfrentamento desse quadro de caos é o objetivo da “Nova Agenda Urbana” a ser aprovada na conferência.
“A urbanização – diz a mais recente versão do documento – é uma das maiores tendências transformadoras do século XXI”. Segundo a ONU, atualmente as cidades ocupam aproximadamente apenas dois por cento do território da Terra, mas concentram 54,5% da população mundial, ou quatro bilhões de pessoas. Hoje 428 cidades mundiais têm população acima de 1 milhão de habitantes.
Por volta dos anos 2050 a população urbana global deverá quase dobrar, pois as cidades concentram cada vez mais as atividades econômicas (hoje geram 70% do PIB mundial), sociais e culturais. O que as colocam também como responsáveis pelos maiores impactos ambientais, ao consumirem mais de 60% da energia global e apresentarem índices em torno de 70% em termos de emissões de gás carbono e de produção de resíduos sólidos.
O Brasil é um dos países mais urbanizados do mundo com um índice em torno de 86% da população, segundo o Banco Mundial. Em 50 anos, de 1960 a 2010, nossa população urbana cresceu 402%, passando de 32 milhões para 160 milhões de pessoas. Pelo censo do IBGE divulgado em agosto passado, o país tem 17 municípios com mais de 1 milhão de habitantes, somando 45,2 milhões de pessoas ou um quinto (21,9%) da população brasileira.
HABITAT I – Foi depois da 2ª. Guerra Mundial que o fenômeno da urbanização passou a preocupar seriamente as nações, cujos recursos tecnológicos e financeiros não conseguiam mais dar conta dos crescentes desafios do inchaço das cidades, com a consequente ampliação da desigualdade social, em especial no mundo em desenvolvimento.
“É na escala das cidades que a humanidade realiza seus objetivos de felicidade, justiça e dignidade, ou, ao contrário, sofre abandono, desespero e violência crescente”, sintetizou a declaração do Simpósio de Vancouver, um encontro paralelo à Habitat I, reunindo 24 especialistas no tema de todo mundo, liderados pela economista britânica Barbara Ward.
Cidade de beleza exuberante, Vancouver tem sido eleita frequentemente como a melhor cidade do mundo para se viver. Em contraste, a conferência que sediou há 40 anos, reconheceu que a rápida urbanização é uma questão global que deve ser tratada coletivamente, não de forma isolada, pelas nações. Não por acaso, uma das principais recomendações da Habitat II foi uma distribuição mais equitativa dos benefícios do desenvolvimento econômico. Uma tarefa que caberia essencialmente ao Estado, que deveria ter o controle absoluto dos planos estratégicos territoriais dos países, das regiões e até locais. De certa forma, poderíamos dizer que a marca da Habitat I foi o planejamento “de cima para baixo”.
Naquele ano de 1976, apenas 37,9% da população mundial (1,5 bilhão) vivia em cidades e acreditava-se o planejamento e a regulação do uso da terra, a proteção do meio ambiente, o atendimento das necessidades das mulheres e dos jovens e, em especial, a proteção às populações afetadas pelos “desastres naturais e ou sociais” ajudariam a criar padrões mínimos de qualidade de vida nas cidades.
A melhoria era traduzida como “a satisfação das necessidades básicas de alimentação, habitação, saneamento, emprego, saúde, educação, instrução e seguridade social, sem discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, ideologia, nacionalidade, origem social ou outra causa, e sustentada na liberdade, na dignidade e na justiça social”. Foi em Vancouver que teve início a discussão do problema da moradia nos fóruns multilaterais.
HABITAT II – Os conceitos e recomendações de Vancouver foram reafirmados na conferência de Istambul, a cidade das mesquitas imperiais, hoje a quarta mais populosa do planeta. Naquele ano de 1996 o percentual de população urbana mundial subira para 45,1% (2,6 bilhões), com maior ênfase nos países em fase de desenvolvimento. Havia então, no mundo, 269 cidades com população acima de um milhão de pessoas, 159 a menos do que hoje.
Sem negar o agravamento da degradação ambiental das cidades, a Habitat II propôs um olhar menos apocalíptico, considerando-as como “centros de civilização” que geram desenvolvimento econômico e social, cultural, espiritual e avanço científico. E recomendou o aproveitamento dessas virtudes para reverter a crise urbana.
Mereceram especial atenção moradia adequada, equidade social, igualdade de gênero, pessoas com deficiência, idosos, crianças e jovens e efeitos sobre os ecossistemas (poluição da água e do ar, falta de saneamento e uso intensivo do transporte individual).
Quase que repetindo os intelectuais de Vancouver, o documento final da conferência fala do início de uma “era da cultura da solidariedade“ como estímulo para “construirmos juntos um mundo onde todos possam viver em uma casa segura, com a promessa de uma vida decente, com dignidade, boa saúde, segurança, felicidade e esperança.”
Nesse contexto, no auge da globalização da economia mundial, a Habitat II reconheceu não apenas os Estados, mas também as autoridades locais (prefeitos e vereadores) como atores essenciais na implementação de suas diretrizes, bem como a necessidade de se abrir espaços para as organizações sociais participarem democraticamente dos debates sobre o futuro das cidades. A marca da Habitat II foi, assim, a cooperação.
HABITAT III – O mundo não está mais sendo urbanizado, já é urbano. Para a ONU isso é mais do que um jogo semântico, é a evidência de que a Nova Agenda Urbana terá que contribuir para um desenvolvimento urbano sustentável. O que significa, antes de mais nada, se engajar na implementação de três importantes acordos internacionais: a Agenda 2030, definida pela Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada em setembro de 2015, em Nova York, em linha com a conferência de 1992 no Rio; o Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, resultante da COP-21 promovida em dezembro do mesmo ano; e o Protocolo de Quioto, que objetiva a redução da emissão de gases que agravem o “efeito estufa”, assinado em 1997, mas que só começou a valer em 2005 após a ratificação dos 55 países com maiores emissões.
A Agenda 2030, em seu item 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), explicita a garantia ao acesso de todos à habitação segura, necessidade de expansão dos transportes públicos, aumento da urbanização inclusiva, salvaguarda do patrimônio cultural, proteção aos pobres e às pessoas em situação de vulnerabilidade, redução do impacto ambiental negativo “per capita” das cidades, acesso universal a espaços públicos seguros e verdes, reforço do planejamento urbano, mitigação das mudanças climática, resiliência a desastres e assistência técnica e financeira para construções sustentáveis.
Um dos grandes avanços que se pode esperar da Habitat III, sob o ponto de vista do planejamento urbano, é a introdução da visão territorial no conceito de sustentabilidade. “Na agenda da Habitat II, habitação, transportes e desenvolvimento da comunidade foram compartimentadas em diferentes setores, e as políticas também foram analisadas por setor. Não houve intenção em qualquer parte do documento para integrar estas preocupações. A compreensão atual é bem diferente. Hoje não podemos começar por um setor, mas pela cidade”, diz Eduardo Lòpez Moreno, diretor do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento de Capacidades da UN Habitat.
Vinte anos atrás, o território era encarado apenas como uma plataforma a partir da qual as ações podem ser executadas. O lugar era apenas onde o poder público localizava suas políticas. Hoje, diz Moreno, “o local é considerado um vetor, um elemento central que prepara o terreno para o bom – ou mal – desenvolvimento. Esta tem sido uma mudança transformadora”.
Com a nova abordagem, a Habitat III pretende valorizar a urbanização como um motor de desenvolvimento com integração social e igualdade. “Ninguém vai ser deixado para trás”, diz o documento a ser assinado em Quito. O desafio é transformar essas belas palavras em ações sustentáveis em seu sentido mais amplo, ou seja, ambiental, social, econômico e a partir de agora também com uma visão territorial. Só assim, a sustentabilidade será a marca da Habitat III.
Diferentemente da Agenda 2030 e demais acordos, a Nova Agenda Urbana não é coercitiva, mas 175 princípios, compromissos e diretrizes em linguagem formal e redundante em seus diversos capítulos, o que coloca de imediato um primeiro desafio para sua implementação: uma boa comunicação. Ou seja, versões mais claras, objetivas e práticas para que as autoridades (em especial as locais) e os grupos organizados da sociedade civil se empolguem e ajudem na concretização de suas recomendações. Com a mesma obstinação com que a população de Quito enfrenta as erupções de vulcões e os terremotos.
Júlio Moreno, jornalista, é Assessor Chefe de Comunicação Integrada do CAU/BR
Publicada em 21/09/2016