“A União Internacional de Arquitetos (UIA) é um importante espaço de interlocução para se promover internacionalmente a arquitetura brasileira e, ao mesmo tempo, nos municiar de informações sobre como os arquitetos estão lidando com a prática profissional e outros desafios contemporâneos, como a formação, em outros países com realidades próximas ou não das nossas. É um espaço privilegiado para que a gente possa interagir de forma mais intensa com os nossos colegas espalhados em outros países”.
É com esta síntese que o arquiteto e urbanista baiano Nivaldo Andrade, recém eleito vice-presidente das Américas (Região III) da União Internacional de Arquitetos apresenta a organização aos colegas brasileiros, incentivando-os a prestarem a atenção nos objetivos e participarem dos projetos que tem para seu mandato que vai até 2026. Ele foi presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e membro do comitê científico do UIA2021RIO.
O arquiteto obteve mais de 75% dos votos dos participantes da Assembléia Geral da UIA que se deu durante o 28º. Congresso Mundial de Arquitetos (UIA2023CPH) realizado em Copenhagen, na Dinamarca, no início de julho. A eleição não foi fruto de uma candidatura isolada proposta pelo IAB, membro representante do Brasil na organização mundial, nem muito menos por ele. “Foi um candidatura dos arquitetos brasileiros, mas a partir de uma articulação internacional muito grande, em reconhecimento à liderança do Brasil na região e do grande esforço para a realização do UIA2021RIO em plena pandemia”, conta Nivaldo Andrade.
Ele foi indicado pelo IAB, a partir de proposta e forte estímulo da maioria das entidades membros da região, seguido do apoio pessoal da presidente do CAU Brasil, Nadia Somekh, e do Conselho Internacional de Arquitetos de Língua Portuguesa (CIALP), na pessoa de Rui Leão, seu presidente, parceiro de longa data do IAB e do CAU, eleito em Copenhagen secretário geral da UIA.
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Qual é a importância de ter um brasileiro como vice-presidente da região III das Américas da União Internacional dos Arquitetos?
O Brasil precisa ocupar esse espaço por seu uma das grandes lideranças no contexto americano, um dos grandes líderes no campo da política internacional e também no campo específico da arquitetura. A arquitetura brasileira já teve um reconhecimento muito maior, nos anos 50 e 60 tendo Rio de Janeiro, Pampulha e depois Brasília como mecas e São Paulo também a partir de um certo momento. Era para onde os arquitetos do mundo inteiro voltavam os seus olhos. Mas hoje, outros países têm muito mais visibilidade na produção arquitetônica do que o Brasil. É preciso retomar esse protagonismo. E o Brasil tem essa capacidade pelo tamanho, pela tradição de ser um catalisador também, de articular os outros países. Essa é a importância. Eu sou o quarto brasileiro a ocupar a posição o que demonstra esta liderança. O primeiro foi Flávio Leo Azeredo da Silveira, entre 1965 e foi e 1969. O segundo foi nosso querido Miguel Pereira, entre 1999 e 2002, nosso querido Miguel Pereira, ex-presidente da IAB em três mandatos, nosso conselheiro fundador do CAU Brasil. E, por último, Roberto Simon, 2017 e 2021. E claro, é importante lembrar que Jaime Lerner foi o único brasileiro que foi presidente da UIA.
Em sua mensagem aos membros da UIA a nova presidente Regina Gonthier listou três objetivos, gostaria de ouvi-lo sobre como pretende implementar cada um deles na região III. O primeiro é “garantir o futuro da UIA, por meio de uma governança mais transparente e colegiada”.
Eu acho que essa questão é fundamental porque na Assembleia Geral, em Copenhagen, houve muitos questionamentos por parte de vários países membros com relação à transparência e com relação à importância da UIA. A UIA é conhecida mundialmente mas se você olhar, por exemplo, as redes sociais, ela tem uma quantidade pífia de seguidores, comparada até com o IAB ou com o CAU, ou com outros países, com outras seções membro de outros países.
É preciso, então, potencializar a UIA como interlocutora privilegiada dos organismos internacionais, a UNESCO, a UN Hábitat, enfim todas essas organizações que já reconhecem a UIA como a única organização mundial dos arquitetos. A UIA precisa se fortalecer e se qualificar como interlocutora para mostrar, inclusive, a importância dos arquitetos na qualificação do ambiente construído, na qualificação da cidade, na melhoria da qualidade de vida urbana, na melhoria da conservação do patrimônio cultural, do patrimônio ambiental, ou seja, o papel social dos arquitetos. Nossa contribuição para a construção de sociedades menos desiguais e mais estruturadas. Isso passa por uma transparência, uma clareza maior sobre todos os processos decisórios, sobre gastos de recursos e etc. que precisa ser fortalecida.
Aqui no Brasil como é que isso se rebateria? Não existe uma estrutura da UIA aqui, certo? É isso?
Não. A estrutura em cada país são as seções membros. Na verdade, a UIA no Brasil é o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), admitido como país membro em 1950, dois anos após criação da UIA. A vice-presidência regional é uma forma de dividir a compartilhar a responsabilidade da presidência mundial, então o papel do vice-presidente, é fortalecer a participação dos países, das seções membros da região na UIA.
Na questão da transparência e da governança colegiada, por exemplo, já houve um encaminhamento na primeira reunião do Conselho 2023-2026 que aconteceu logo após a eleição. De imediato havia uma questão a tratar com relação às Américas, a região III. Todas as regiões tinham que eleger quatro conselheiros e um vice-presidente, e todas elegeram, mas a nossa região só tinha três candidaturas ao conselho: Brasil, México e Colômbia, sendo que o Brasil foi eleito para a vice-presidência, portanto, não concorria mais ao conselho. Então havia quatro vagas e só duas foram ocupadas, uma pelo candidato titular e suplente do México e outra ocupada pelo candidato titular e pelo candidato suplente da Colômbia. Então, a região das Américas já começava desfalcada.
Como o estatuto da UIA estabelece que é o Conselho que na sua primeira reunião após a eleição decide como ocupar essas vagas, já que não houve candidaturas, duas seções membros, o Colégio de Arquitetos do Chile e o Colégio de Arquitetos da Costa Rica havia enviado cartas apresentando nomes para ocupar as posições. E após uma articulação nós deliberamos por aceitar essas indicações e conseguimos estabelecer uma equidade gênero, porque dos quatro conselheiros, dois são homens e duas são mulheres. A composição final ficou assim: Jadile Baza (titular) e Leoncio Orellana (suplente), do Chile; Augusto Ballen Rey (titular) e Flavio Henrique Romero (suplente), da Colômbia; Andrea Coto Martinez (titular) e Pablo Antonio Mora (suplente), da Costa Rica; e Marco Vergara Vázquez (titular) e David Ignacio Rojas (suplente), do México.
Minha proposta para dar mais transparência e promover essa governança colegiada é realizar reuniões regulares, online, bimestrais, com os presidentes de todas as seções nacionais, mas preciso obter o aval deles na primeira reunião. Hoje somos 19 países membros ao todo nas Américas. O objetivo é mantê-los informados do que está acontecendo. A reunião do Conselho da UIA, realizada em Copenhagen foi em cima da hora, logo após a eleições. A primeira com uma agenda previamente estruturada, está marcada para o dia 25 de julho, online. Então, depois dessa reunião, eu vou marcar a primeira reunião com os presidentes das seções membros das Américas, eu pretendo propor uma maior participação das seções membro da região III nos grupos de trabalho da UIA, porque a UIA se organiza em quatro comissões permanentes e mais 11 grupos de trabalho. As comissões são educação para arquitetura, prática profissional, concursos (que era coordenada pela Regina Gontier, a nova presidente, há muitos anos) e a de objetivos para desenvolvimento sustentável (ODS). Os grupos de trabalho são, em princípio, temporários, mas alguns existem há muito tempo como patrimônio, a arquitetura para as crianças, espaços públicos e arquitetura da saúde.
Então, fomentar a participação das seções membros nessas comissões e grupos de trabalho é uma das nossas tarefas. Outra, é fazer com que todos os países das Américas participem da UIA, não só os 19 que estão lá, já é muito mais do que na 25º Congresso, realizado em Durban, na África do Sul, em 2014, mas nas Américas nós temos mais de 30 países. A Jamaica já está querendo voltar, já mandou uma carta indagando quais providências deve tomar. Então, esse movimento já está acontecendo no sentido da integração plena, dos países das Américas na UIA e nós queremos impulsioná-lo.
O segundo objetivo apontado pela nova presidente da UIA “acompanhar e pesquisar a evolução da profissão” e – acrescentando outras palavras da mensagem inicial dela – “valorizar a arquitetura como uma disciplina de interesse público e a condição chave para que a profissão assuma as suas responsabilidades”. Como caminhar rumo a este objetivo?
Essa é uma questão fundamental e é importante que nós estejamos afinados com Regina Gonthier e ela conosco. Na carta de princípios que o IAB enviou para os presidentes das seções membros pedindo apoio à nossa candidatura essa questão foi claramente colocada. Nós defendemos aprimorar e melhorar as ações e discussões da UIA em temas importantes como os assentamentos informais, arquitetura humanitária, processos participativos de projeto, equidade de gênero, etnicidade, arquitetura efêmera, migrações, transformações urbanas, mudanças climáticas e arquitetura sustentável, dentre outros que afetam a vida em todo o planeta. Isso faz parte da nossa plataforma e foi divulgada em cinco idiomas durante o período da campanha e está absolutamente coerente com todo um debate que nós promovemos na construção do UIA2021RIO, esses eram os temas dos nossos eixos temáticos.
Esses eram os temas das palestras, debates, mesas redondas e das atividades que nós realizamos no 27º Congresso Mundial de Arquitetos. E, infelizmente a UIA por ter nascido num contexto muito europeu, muito concentrado na Europa e no hemisfério norte, num contexto norte Atlântico, ela nasce com o pensamento muito ligado a esses países. Mas hoje ela é formada predominantemente pelos países em desenvolvimento. Então a gente precisa trazer esse debate para os assentamentos informais. A UIA não pode continuar tratando arquitetura só a partir da produção dos grandes escritórios de arquitetura, que têm 100 funcionários e elaboram grandes projetos em aço e vidro em grandes cidades, seja de que continente for. Não é mais isso. Isso é importantíssimo, mas não é só isso, não são só os concursos para museus, bibliotecas.
É preciso entender e promover a inclusão na agenda da UIA de outros perfis profissionais no campo da arquitetura, considerando o arquiteto acima de tudo, um profissional que, baseado no seu conhecimento técnico, humanístico e artístico, é capaz de liderar, articular uma série de atores nos processos de transformação do espaço em suas diferentes escalas e abrangência no território. Então, a produção da arquitetura hoje, o fazer arquitetura, hoje, a atuação do arquiteto hoje no mundo, ela não se limita mais a um ou dois ou três perfis. Ela é muito diversificada.
A UIA precisa refletir isso, então isso está na nossa plataforma. A fala da nova presidente no sentido de acompanhar e pesquisar a evolução da produção da profissão dentro de um contexto em que arquitetura é uma disciplina de interesse público e condição chave para que a profissão assuma suas responsabilidades é absolutamente coerente com a nossa agenda, e é coerente com a própria história do IAB. O I Congresso Brasileiro de Arquitetos realizado em 1945, em São Paulo, já discutia a função social do arquiteto, que até hoje é a nossa pauta principal. O arquiteto não está a serviço do seu cliente, privado ou público, ele está a serviço da sociedade. Deve estar a serviço da sociedade. Naturalmente deve estar a serviço de quem paga ele, mas, acima de tudo, do interesse coletivo. Então essa me parece uma questão fundamental. Arquitetura é uma disciplina de interesse público. A fala da presidente Regina Gonthier me parece absolutamente pertinente e coerente com a nossa agenda.
Outro objetivo apontado pela nova presidente é “contribuir com expertise arquitetônica para o desenvolvimento sustentável fortalecendo a voz e o impacto da organização em defesa da Agenda da ONU sobre mudanças climáticas e energéticas”. Como pode se dar esta contribuição a partir da região III, onde temos um ponto focal muito grande, que é o Continente Amazônico, tema levado pelo IAB para o UIA2023CPH?
A própria UIA está preocupada com este tema essencial abordado no nosso estande no pavilhão do Congresso de Copenhagen, feito pelo IAB em parceria com o CAU Brasil e com os membros do Colégio das Entidades Nacionais de Arquitetos e Urbanistas (CEAU). Nosso espaço refletia isso e a palestra da professora Ana Cláudia Cardoso, conselheira suplente do CAU Brasil, realizada na embaixada brasileira em Copenhagen, também era sobre isso. E outras ações mais, como grupo de trabalho sobre a arquitetura dos povos originários, criado com apoio do Real Instituto de Arquitetos do Canadá. O arquiteto Igor Vetyemy, ex-presidente do IAB/RJ está lá nos representando.
Então essas questões da sustentabilidade são muito fortes dentro da UIA. A própria Comissão dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) quando a UIA, criada em 2017 é um exemplo, pois é uma das quatro comissões permanentes, o que demonstra a importância que o tema tem dentro da organização. E não é à toa que um dos dois coordenadores da comissão é o arquiteto brasileiro Cid Blanco, indicado pelo IAB. A comissão dos ODS tem promovido um debate importante dentro da UIA sobre o papel do arquiteto, da arquitetura, para que possamos atingir os objetivos dessa agenda da ONU.
Mas eu acho que temos que ir além: um outro aspecto que o IAB colocava na nossa plataforma da candidatura diz respeito a uma questão que me é muito cara, que é a minha área de atuação principal, que é a questão do patrimônio. Muitas pessoas olham o patrimônio a partir do patrimônio histórico, antigo e etc, e na verdade, quando a gente fala da reapropriação da preexistência, existe um debate muito mais amplo, como apontado pelos ganhadores Prêmio Pritzker de 2021, a arquiteta Anne Lacaton e o arquiteto Jean-Philippe Vassal, vencedores do Prêmio Pritzker de 2021. Eles são conhecidos não por intervir em grandes monumentos, mas por intervirem na arquitetura banal, mas entendendo que não se deve demolir nunca, a demolição deve ser a última opção, porque a demolição tem um custo ambiental. Tem um custo econômico, tem um custo social muito grande. Portanto, defendem e colocam em prática em seus trabalhos a reconversão, a reutilização sempre. Então, há um debate que faz a ponte entre a preservação do patrimônio, que não precisa ser um patrimônio excepcional, e a questão do desenvolvimento sustentável e das mudanças climáticas e da sustentabilidade, que precisa ser fortalecido no âmbito da UIA, mostrando o papel que os arquitetos têm nesse processo. Na nossa plataforma a gente colocava: promover a importância da preservação e adaptação funcional não só de edifícios históricos, mas também a reabilitação do ambiente construído e a reutilização de materiais de construção e elementos arquitetônicos, reduzindo o impacto ambiental, buscando soluções inclusivas de moradia e serviços e preservando a memória, a memória coletiva, que vai muito além do monumento ou do centro histórico. Ela engloba a memória da própria comunidade que está ligada, às vezes, aos edifícios banais que podem ser reutilizados. É uma outra forma de olhar para o patrimônio, articulando ele com muito mais força, com a discussão do desenvolvimento sustentável.
A preservação da preexistência não é uma exceção. Ela deve ser a regra. Mas não uma preservação mumificadora, uma preservação idealizadora. É, se não há grandes valores históricos. É uma preservação por objetivos pragmáticos para não gerar resíduos para diminuir os custos, para aproveitar estruturas e fundações, para não demolir, e sim reaproveitar e reciclar o discurso, um pouco da prática do escritório Lacaton & Vassal, não é? O tema da reutilização de materiais da construção ainda é pouco debatido ainda pela importância que isso pode ter.
Aqui no Brasil constrói-se muito, mas se reaproveita pouco, certo?
Exatamente! Existem experiências inspiradoras nas Américas. Cito como exemplos o Al Borde, escritório de Quito, no Equador, e o Arquivo, uma empresa de Salvador, na Bahia, criada por um ex-aluno meu, que são organizações coletivas. O Al Borde ele fez uma intervenção numa casa só se utilizando de materiais de reciclagem. E recuperou esse casarão ao longo de vários anos, ganhou vários prêmios. Nós trouxemos eles para uma palestra no ArquiMemória 5 – Encontro Internacional sobre Preservação do Patrimônio Edificado realizado em Salvador, em 2017.
No caso do Arquivo, depois de estagiar no Al Borde, meu ex-aluno Pedro Alban, junto com a sócia Natália Lessa, criaram essa empresa que tem apresentado projetos em vários eventos nacionais, como a Bienal de São Paulo e internacionais. Eles têm apresentado essa experiência de quando se está sendo demolido um edifício, uma casa, não se deve jogar nada fora. Você pode aproveitar porta, você pode aproveitar a bancada, você pode aproveitar a janela, você pode aproveitar pisos, você pode aproveitar alguns revestimentos, tudo isso. Eles criam um arquivo que está disponível na internet. Essas coisas são vendidas a um preço muito menor e são reutilizadas. Já existem arquitetos aqui na Bahia fazendo projetos a partir desse material. O projeto é condicionado pela utilização desses materiais, sai mais barato e você configura o projeto a partir desses elementos.
Outro exemplo são os edifícios dos anos 60 e 70 de apartamentos, e de escritórios também que tinham esquadrias de veneziana, de madeira e vidro. Hoje estão sendo trocados por PVC ou alumínio, aí jogam fora muitas esquadrias originais, mas esse material pode ser reutilizado. No edifício onde minha avó morou, onde tiraram centenas de esquadrias, os arquitetos do Arquivo pegaram essas esquadrias e estão vendendo, elas estão virando divisórias, estão virando sofá, estão virando uma série de coisas. E janelas também viram janelas, continuam sendo janelas às vezes, tudo isso é ainda feito numa escala muito pequena para uma cidade como Salvador, mas mostra as potencialidades do reuso daquilo que não tem valor histórico significativo, mas que tem impacto ambiental. E que tem um aspecto simbólico também.
Como pretende valorizar a arquitetura da região e a troca de experiências? Eventos? Concursos? Premiações? Maior intercâmbio entre as entidades?
A primeira coisa, como disse, é potencializar a participação das seções membro dos países das Américas, as que já são membros e as que venham a fazer parte, nas comissões, grupos de trabalho e prêmios. A UIA já tem uma série de premiações, infelizmente, a participação do continente tem sido pequena. Nos prêmios trienais da UIA, do continente americano houve somente uma peruana, Belen Desmaison, que recebeu menção honrosa no Prêmio Vassilis Sgoutas para a arquitetura a serviço dos mais desfavorecidos, por um projeto na Amazônia. Então é preciso potencializar essa participação. Queremos também promover eventos regionais.
O IAB vai promover no ano que vem (e digo isto aqui em primeira mão), e já conta com o apoio do IPHAN da Bahia, o ArquiMemória 6, que é o maior evento de patrimônio do Brasil, e acredito, um dos maiores das Américas, e que nesta edição terá um caráter mais internacional que nas anteriores. Nossa ideia é fomentar, principalmente, a participação dos arquitetos das Américas. As Américas têm uma série de bienais, seções membros da UIA do continente americano tem uma série de bienais importantes: além da nossa de São Paulo, tem a de Quito, da Argentina, de Lima, do México e da Costa Rica, dentre outras. A UIA tem ainda realizado muitos concursos internacionais. E as seções membros das Américas podem também promover. A nossa ideia é articular e ser catalisador desses processos.
O que aproxima e distância as arquiteturas e urbanismo dos países das Américas considerando suas diversidades socioeconômicas e sobretudo culturais?
Eu acho que há muitas coisas que aproximam num primeiro olhar. A gente pode dizer que os países da América Latina têm uma proximidade maior entre si do que com os Estados Unidos e o Canadá. Mas quando a gente vê, nos Estados Unidos, por exemplo, o que aconteceu depois do furacão do Katrina lá em New Orleans, constata-se a proximidade das situações de precariedade e de emergência com os países da América Latina. A gente vê que os desafios das situações resultantes de mudanças climáticas e dos acidentes naturais são muito próximos. Da mesma maneira se comparado com as Antilhas quando ocorrem furacões e outros fenômenos semelhantes.
Existe uma aproximação muito grande, porque existe uma questão da informalidade, principalmente, na América Latina, impactando 60% da população em alguns países, outros até mesmo 70%.
São pessoas que trabalham na informalidade. As construções são feitas na informalidade e é preciso, portanto, que os arquitetos saibam como trabalhar nessa informalidade. A questão da assistência técnica aqui no Brasil é uma experiência ainda incipiente porque não totalmente implementada, existem apenas em casos pontuais, mas em alguns outros países sequer existem. Esse é um intercâmbio de experiências para ser feito.
E há, certamente, grandes diferenças. Atuando como arquiteto eu tenho uma relação muito grande com a Itália, onde um escritório de arquitetura dura décadas e passar para os filhos e netos é natural, mas no Brasil o escritório de arquitetura que durar 10, 20 anos é quase um milagre. Porque as crises econômicas aqui – ou na Argentina, ou no Chile, ou na Venezuela – são tantas, assim como as crises políticas. Os arquitetos às vezes ficam um tempo sem ter trabalho ou sendo sub-remunerados em função da situação econômica do país. Então nesses países manter o escritório, manter um trabalho contínuo como arquiteto, profissional liberal, é muito difícil.
Por outro lado, isso leva ao fato de que no Brasil o arquiteto que trabalhe para o Estado tenha um protagonismo que talvez ele não tenha em outros países como promotor de políticas. Se a gente for pensar historicamente, o Conjunto Residencial Pedregulho, no Rio de Janeiro, um dos marcos de nossa arquitetura moderna, foi projetado por um funcionário público, o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, da mesma forma como os palácios de Brasília por Oscar Niemeyer. O próprio Lucio Costa, depois de ganhar o concurso do Plano Piloto de Brasília, foi contratado como funcionário público. E os conjuntos habitacionais mais importantes da arquitetura Moderna Latino Americana foram projetados no México, na Venezuela, no Brasil, no Peru, por funcionários públicos.
Então, o papel do Estado na América Latina, historicamente, na produção de arquitetura de qualidade, para fazer frente às desigualdades, aos problemas sociais, é uma realidade que às vezes você não encontra em outros contextos. Nos Estados Unidos e em alguns países europeus é a iniciativa privada que tem esse papel.
Volto às aproximações, novamente para falar da minha área no campo do patrimônio. Os desafios dos centros históricos de Quito, da Colônia do Sacramento, Salvador, Ouro Preto, Olinda, Puebla, Cidade do México, não são muito diferentes entre si, assim como da cidade do Panamá e de Havana. O problema da desigualdade social, da criação de novas centralidades, que esvaziam o centro antigo, da dificuldade de preservar esse patrimônio ocupado por uma população muito pauperizada, o desafio de fazer isso sem promover processos de gentrificação, garantindo a permanência dessa população de baixa renda, de conciliar isso com turismo, que pode trazer recursos, mas não fomentando apenas o turismo expulsando a população. Os desafios são os mesmos.
A Federação Panamericana de Associações de Arquitetos completou um século de existência recentemente e, a convite de sua direção, escrevi um artigo sobre 100 anos de preservação do patrimônio nas Américas. Talvez tenha sido o trabalho de pesquisa mais difícil que eu já fiz, porque são 100 anos no continente, era a pandemia, eu estava trancado em casa, tive dificuldade do acesso às fontes, mas consegui escrever esse artigo, que compõe um livro que mostra um pouco desses caminhos paralelos e o que a gente tem muito a aprender com as experiências dos outros países das Américas.
E também temos muito a ensinar com a experiência, por exemplo, do IPHAN, que é um dos órgãos mais importantes de preservação do patrimônio do continente. Eu diria que, junto com o Instituto Nacional de Antropologia e História do México, talvez seja o mais importante. E o mais antigo e mais influente e que esteve recentemente à beira da destruição. Ele foi destruído de algum modo no governo anterior e agora está sendo reconstruído e voltando a cumprir sua função.
Na questão da preservação do patrimônio, é interessante ressaltar a realidade dos Estados Unidos, onde eles, a partir da experiência inglesa, contam com uma atuação muito grande de fundações privadas. As fundações privadas exploram os sítios históricos e monumentos para o turismo, para visitação dos próprios cidadãos norte-americanos, o que gera receita para a preservação. E isso é uma coisa que no Brasil é o Estado que tem feito isso, mas em algumas situações não tem conseguido fazer a contento. Eu acho que se a gente pudesse se “contaminar”, o Estados Unidos ter mais a atuação do Estado e aqui a gente ter mais atuação do privado, seria um equilíbrio interessante. Claro que o privado, sempre limitada.
A falta de moradia ainda faz parte da realidade de parte dos brasileiros e da maioria dos países da América Latina. A habitação social deve ser uma política pública permanente em todas as esferas de governo (federal, estadual e municipal)?
Eu acho que o Brasil está num momento de repensar as políticas habitacionais. O Brasil, muito alinhado com outros países latino-americanos, como México, Venezuela, Peru, Argentina, Colômbia e Chile, produziu grandes conjuntos habitacionais nos anos 40, 50 e 60, de alta qualidade arquitetônica, premiados e mesmo inspiradores de outros, como o Conjunto do Pedregulho, inspirador do Complexo Residencial Corviale, em Roma, e do Conjunto Biscione, em Gênova.
Depois vem a experiência do BNH, que foi muito criticada, por ser na periferia, pela má qualidade dos projetos, pelo gigantismo, por uma série de questões, mas em seguida veio o Minha Casa, Minha Vida que é muito pior. Isto após algumas experiências exitosas de urbanização de favelas, como o Favela Bairro, no Rio de Janeiro, coordenadas por Luiz Paulo Conde e Sérgio Magalhães, que foram replicadas na Colômbia.
Então, a gente tem hoje muito a aprender dos outros países também nesse momento que o Brasil vive de reconstrução das políticas ligadas à habitação social. O novo programa federal não pode repetir esse modelo falido de produzir milhares de unidades habitacionais sem equipamentos nas periferias urbanas, longe da centralidade, longe de onde as pessoas têm trabalho formal ou informal. E a gente tem experiências em outros países da América Latina que podem servir de referências. A própria Colômbia é um exemplo muito forte disso. Então eu acho que a UIA pode ser um espaço de articulação, um espaço de diálogo e de intercâmbio nesse sentido.
Por último, como professor, diante das mudanças que estamos vivendo em relação ao clima e outras, o senhor vê necessidade de mudança dos currículos dos cursos de arquitetura?
Não conheço tão bem a realidade de outros países. Eu posso falar daqui do Brasil que eu conheço melhor. Eu acho que não exatamente os currículos dos cursos de arquitetura, mas as disciplinas, precisam ser modificadas, seus enfoques precisam ser atualizados.
Ainda se ensina, por exemplo, o projeto de arquitetura muito focado nos projetos excepcionais. Ainda se ensina a história da arquitetura, muito focado nas obras de exceção. Eu acho que é preciso trazer outros temas para o debate, outros temas para a experiência prática nos ateliês de projeto dos cursos de arquitetura e urbanismo para ampliar essa questão e eu não falaria só das mudanças climáticas. Eu acho que são todas essas questões contemporâneas que eu coloquei em pergunta anterior que precisam ser trazidas à questão, ou seja, de como lidar, enfrentar, a questão das desigualdades, da informalidade. Não é simplesmente urbanizar. A favela é muito mais do que criar conjuntos habitacionais. Esta é uma visão ultrapassada. É preciso fazer junto com a comunidade. É preciso criar processos participativos de projeto.
É preciso criar, trabalhar com assistência técnica. A gente já tem algumas experiências na pós-graduação em assistência técnica aqui no Brasil, a partir da experiência da Universidade Federal da Bahia, minha universidade, coordenada pela professora Ângela Gordilho, que foi replicada na Paraíba, em Brasília, em várias outras universidades. Mas, no ensino de graduação ainda é bastante incipiente, no Brasil, nessa questão da assistência técnica. Então eu não sei se uma mudança de currículo eu acho que a abordagem é que tem que ser atualizada. Essa visão do arquiteto como esse profissional agregador, como o maestro de uma orquestra, em que vários atores participam, e não como um demiurgo, que sozinho do alto do seu pedestal, do alto da sua prancheta digital define o que é que vai ser a transformação do espaço construído. É mais fazer “com” do que fazer “para”.
Entrevista para Julio Moreno