Não existe política habitacional no Brasil. Não há, nunca houve e não parece que surgirá. Mesmo a moradia sendo a função primordial da cidade e a definição do uso do solo uma regulação essencial do Estado, por ação municipal, nós não prevemos onde morará o trabalhador e o pobre. Logo, esses, pela ausência e pela emergência, inventaram, estão inventando e continuarão a inventar uma solução que foi, é e continuará a ser a favela.
Com diferentes sinônimos ao longo da História, do mais pejorativo até chegar a batizar boate em Paris, a favela converteu-se em um regramento epistemológico. Além de dominar as paisagens urbanas, do Oiapoque ao Chuí, da megalópole paulistana ao menor rincão rural, a favela é o modo como funciona o Estado ao burlar, ele próprio, as metodologias que poderiam produzir melhor ordenação e integração territorial. O vício da velocidade burra e imperiosa sobre a reflexão e o desenho age inclusive em diferentes escalas, da pequena praça às grandes regiões metropolitanas.
A polarização político ideológica atual, ser mortadela ou coxinha, progressista ou conservador, tem origem na vergonhosa segregação espacial que aprisiona ricos e pobres em lugares separados. Cada qual com uma esfera pública para chamar de sua. A Lava-Jato é resultado do urbanismo-favela. Através de obras superfaturadas, alimentamos a exclusão, financiando partidos e políticos, que criam mais obras, lucrando mais o agente econômico, segregando-se mais ainda. É um círculo infernal. E o Judiciário não atua sobre essa causa. Até o direito urbanístico favelizou-se.
A liberdade é uma variável transgressora e bela na equação do planejamento da habitação, pois as pessoas podem morar onde lhe apetece, recusando as previsões de moradia popular pelo zoneamento.
O planejamento visa o interesse público ao promover que a diversidade social compartilhe os mesmos espaços públicos, criando mais harmonia social. Pela convivência entre diferentes educam-se todos. O contato com o mais abastado ou o mais estudado faria com que as crianças mais pobres aspirassem a cenários melhores para si, por exemplo. O contato com o trabalhador ou com o mais pobre faria com que a classe alta percebesse melhor as nuances da realidade cotidiana, acessando compreensão mais ampla para a própria democracia.
Todos se beneficiam desse contato pois ele propicia inspiração mútua.
O lugar da moradia popular no país é definido exclusivamente por uma dinâmica de mercado, ocorrendo onde é mais barato. Contudo, o planejamento absoluto do território é uma utopia, pois cidades já existiam antes dos planos. Quando o planejamento urbano estava indo com o milho, a cidade já estava voltando com o fubá. Assim é na maioria dos assentamentos humanos no mundo. Aquelas integralmente planejadas tentaram organizar-se melhor, mas também falharam pois não conseguiram acomodar os fluxos migratórios vindos do campo ou de outras regiões urbanas.
Piorando o modelo, não dotamos essas regiões afastadas e mais baratas de transporte público. Ou seja, nem no metrô, ou no trem, ou no ônibus nos reunimos. Daí as reclamações dos ricos com abertura de estações em Ipanema, Leblon ou Higienópolis. E por isso falamos tanto, os pobres, em “acesso à cidade”.
SEGREGAÇÃO NO ESPAÇO PÚBLICO
Poderíamos então nos encontrar na escola pública? Não. Também educamos nossas crianças de forma segregada. Nos postos de saúde ou hospitais? Cuidamo-nos separadamente.
No espaço público? Lá finalmente nos reuniríamos! Não. Curiosamente, somos perniciosos com a desordem, com ambulantes sem controle, como se compensação fosse pelas outras segregações. Ou licenciamos para um “operador”, por exemplo, 26 quiosques na Orla Conde. Um quiosque a cada 65 metros onde antes havia uma Perimetral. O esforço para criar espaço de convívio é “favelamente” estimulado.
Podemos finalmente encontrar-nos na natureza? Não, pois lá estão as favelas na paisagem, vitoriosas, sobre o escárnio da ausência de política habitacional. Lá estão, mas nem urbanizadas são. A favela é a regra.
Ironicamente, viemos todos do mesmo lugar, os centro urbanos históricos, onde vivemos mais próximos no passado. Vazios, subutilizados, mono-funcionais, precisam ser reocupados urgentemente. São uma deseconomia crescente.
Os movimentos de luta pela moradia estão portanto eticamente, moralmente e ambientalmente corretos ao invadir imóveis abandonados há décadas. As defensorias públicas precisam ir além da proteção dos ocupantes. O Judiciário precisa exigir a implementação de políticas de utilização compulsória, como o IPTU progressivo, em imóveis ociosos. É uma garantia constitucional, pois, na história aqui contada, eles são os únicos que não são favela. São exceção à regra.
(Artigo publicado em O Globo no dia 01/06/2017)
2 respostas
Tenho algumas dúvidas. O IPTU progressivo no tempo obrigaria ao proprietário do imóvel a construir no total de seu potencial construtivo ou a pagar o IPTU cheio, ocorre que quando vários proprietários são obrigados a construir em uma determinada região o valor do imóvel cai ao seu limite de custo, podendo inclusive causar prejuízo em caso de não comercialização total. Quem arcaria com essa diferença? A política de tombamento de imóveis também precisa ser revista pois de nada adianta tombar um imóvel cujo proprietário não tem a menor condição de repara-lo. O custo da construção também é muito elevado e parte dessa culpa é do excesso de Estado, é ITBI, é RGI, é taxa de aprovação de financiamento, é taxa de instalação, é taxa de ligação, é taxa de corretagem, é sistema S é sindicato enfim há uma cadeia de problemas.
Não sou nenhum estudioso do assunto “Favela”, e não disponho de dados nem históricos nem sociais para corroborar o que penso, mas acredito que a raiz do problema esteja ligada não apenas à falta de planejamento urbano em si, mas à falta de planejamento no sentido amplo da palavra (não urbano, mas econômico/social e do estado) e a dois outros fatores importantes: interesses políticos e descumprimento das leis.
Não existe um planejamento de desenvolvimento regional para as cidades e estados brasileiros, o que impede o crescimento econômico de determinadas regiões, cerceando as oportunidades aos cidadãos.
Em paralelo, interesses políticos exortam um processo migratório descontrolado, transferindo problemas sócio-econômicos para os grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que a indústria das promessas eleitorais garantem votos em troca de títulos de posse de terrenos.
Por fim, talvez também por permissividade política, as ocupações irregulares, muitas em áreas de risco, ao invés de serem combatidas conforme rezam a legislação e as Normas Técnicas, são “aceitas” por representar mais votos nas eleições, mais mão de obra barata, e mais necessidade de obras públicas que geram propina aos nossos governantes.
Há muita hipocrisia e omissão neste país, em todos os níveis sociais e culturais, e apenas com um projeto educacional apartidário e apolítico de longo prazo, alinhado a um planejamento econômico adequado, é que poderemos quem sabe daqui a 30, 40 anos, deixar de ser o “país do futuro” para ser um país justo.