Nos anos 1960, quando a América Latina estava debatendo sobre como lidar com os assentamentos informais, as favelas, o urbanista britânico John F. C. Turner definiu que “favela não é problema, é solução”. Naquela ocasião, no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, as remoções forçadas eram a metodologia vigente.
Não foi a frase de Turner em si, mas sim uma série de mudanças no ambiente teórico do urbanismo, amparadas em práticas pontuais, no então chamado Terceiro Mundo, que moveriam este campo do conhecimento para reconhecer que a autoconstrução da moradia, informal, próxima dos empregos e dos serviços públicos, resultava socialmente eficiente, e que, portanto, a urbanização das favelas, onde já estavam, era o correto.
Diante da omissão do governo, o que fazia a população nada mais era do que seguir lógica própria, de racional atavismo econômico, gerindo escassez e recursos, e achando solução. Instituições internacionais, como o Banco Mundial, legitimariam esta abordagem, mediando intervenções, monitorando, pesquisando e operacionalizando tal práxis. As experiências do Favela Bairro no Rio e sua evolução, o “urbanismo social” de Medellin, continuam a ser os grandes expoentes de um desenho global.
Entretanto, na história do mundo “desenvolvido”, especialmente na transição do século XIX para o XX, tanto os slums dos EUA como as bidonvilles francesas, que era como moravam os mais pobres, pelas desigualdades da primeira fase do capitalismo industrial, resistiriam por muito tempo. Grande esforço intelectual, técnico e político foi feito nestes países para equacioná-los. Não é à toa que se desenvolvem as ideologias na mesma proporção que avança a arquitetura, no alvorecer do 1900. Política habitacional, moradia racional, zoneamento funcional e arquitetura moderna são fundamentos de um mesmo princípio, promover sociedade urbana integrada e coesa. Ambos os países, pilares da democracia ocidental, colecionam as melhores práticas de acesso à habitação e à cidade. E sofrem hoje novamente com o recrudescimento da segregação territorial.
Nós não estamos fazendo absolutamente nada. As favelas crescem descontroladamente no Rio. O GLOBO mostrou em reportagem de agosto que, de 2016 para 2017, cresceram mais de 300 mil metros quadrados, algo como cinco Maracanãs em um ano. Semana passada, outra matéria mostrou o uso de drones por moradores da Tijuca para monitorar construções irregulares. Fracassam retumbantemente as iniciativas da Secretaria de Urbanismo para lidar com a favelização. Nítida é a aliança das milícias com a expansão imobiliária informal da Zona Oeste. E todos são reféns do Minha Casa Minha Vida, a grande desculpa para não fazer nada.
Os bairros informais, dos trabalhadores e suas famílias, são os lugares onde perpetua-se a ausência da República, a ponto de já termos um estado paralelo, armado, rico e violento. A democracia está se fraturando também. O Rio de Janeiro sujeita mais de 20% da sua população à habitabilidade precária. Ao mesmo tempo, nosso centro histórico é vazio. O Chile subsidia o aluguel para jovens famílias que queiram ir morar na área central da cidade.
Não podemos ter cidadania à deriva. Tanto devemos urbanizar favelas, como monitorar e controlar, encerrando o ciclo de geração de mais favelização. Garantir que as gerações futuras possam migrar para a cidade formal que já existe. Para tanto, crédito imobiliário e aluguel subsidiado são meios de mudança. Nossa realidade requer uma solução inventada por nós mesmos.
Esta coluna encerra minha colaboração no GLOBO. Desde setembro estou residindo em Cambridge, EUA, por graça de uma bolsa ofertada pela Escola de Arquitetura e Urbanismo de Harvard. Honrado sinto-me por ter edificado nesse outro tipo de espaço, não físico, mas de pensamento, onde imprensa livre e democracia se confundem. Agradeço imensamente aos editores e equipes pela oportunidade. E especialmente a você, leitor, pelo estímulo e paciência com um arquiteto que escreve.
Artigo do arquiteto e urbanista Washington Fajardo, conselheiro suplente do CAU/BR pelo RJ
(Fonte: O Globo)