Eleição de arquitetos de língua portuguesa vai ajudar no reordenamento da UIA

24 de agosto de 2023

 

 

Eleito secretário-geral da organização, Rui Leão acredita que os arquitetos lusófonos podem ajudar a UIA a mudar o foco do eurocentrismo para uma visão mais universal da arquitetura 

 

Fazer com que a União Internacional dos Arquitetos (UIA) promova um trabalho mais inclusivo e útil para as secções nacionais é, segundo o novo secretário-geral da organização Rui Leão, um dos objetivos da nova diretoria eleita no último Congresso Internacional da UIA que aconteceu Copenhagen no início de julho. Leão, que nasceu em São Tomé e Príncipe (África), estudou em Porto (Portugal) e é radicado em Macau (China), é um dos três arquitetos de língua portuguesa eleitos para a nova diretoria presidida pela sueca Regina Gonthier. Composta por nove integrantes, a nova diretoria também conta com os lusófonos Nivaldo Andrade, arquiteto brasileiro eleito vice-presidente para a América, e o angolano Vity Nisalambi, vice-presidente para a África.

 

Para Rui Leão a eleição de três elementos de língua portuguesa deve trazer alguma diferença nas ações da UIA “porque a organização UIA teve o seu início muito centrado na Europa”. Ele acredita que por terem uma visão mais diferenciada dos problemas de habitação vividos em seus países, eles têm contribuições importantes para apresentar.  Segundo ele, a nova diretoria pretende realizar um reordenamento nas ações da UIA. “A presidente Regina tem uma visão muito clara de reordenamento da UIA. Pretende fazer com que a UIA sirva mais aos propósitos dos arquitetos proporcionando um trabalho mais útil às secções nacionais”, afirma.

 

Confira abaixo a entrevista:

 

Qual a importância de ter três arquitetos de países de língua portuguesa na direção da UIA?

Essa é a primeira vez que isso acontece e em cargos de direção. Acho que faz alguma diferença porque a UIA teve o seu início muito centrado na Europa.  Faz 75 anos que foi instituída em meados do século XX. No pós-guerra as grandes questões temáticas que se punham a nível de arquitetura tinham a ver com a reconstrução da Europa. Portanto a UIA teve um início de percurso a partir dessas questões. A história da arquitetura é em grande medida a história da arquitetura europeia na maior parte das escolas a nível mundial. E continua a ter um peso muito grande na maneira como pensamos arquitetura, como pensamos espaço, como pensamos as cidades.

 

Acho que nós lusófonos temos uma visão de mundo um pouco diferente, mais cruzada das coisas e de alguma maneira temos mais disposição para tentar perceber a complexidade de mundos diferentes. Acho que isso, tem a ver um pouco com a herança que foi deixada nas ex-colônias. Digamos que seja um lado positivo do colonialismo, que passa por compreender os contextos. Claro que há sempre modelos que são impostos, e o colonialismo tem isso como regra, mas depende também da maneira como se adapta, se interpreta, e se consegue perceber as questões climáticas, as questões sociais, as questões culturais, modelando a maneira de organizar as cidades. Acho que isso é muito interessante porque é uma forma mais inclusiva de tentar compreender o mundo.

 

Cada um de nós, angolanos, brasileiros e eu – que sou um bocado de várias coisas porque sou de uma família de Goa, nasci em São Tomé na África, e vivi a maior parte da minha vida em Macau, na China – temos muito a contribuir. Um movimento pelas várias latitudes, que permite-nos ter uma visão mais completa. Minha crítica em relação eurocentrismo não é em relação a questões específicas da Europa. As várias culturas europeias são válidas cem por cento, são importantes, mas não é isso. É no sentido que há de exclusividade. Ou seja, de alguma maneira temos uma visão que é diferente dessa Europa central. São questões complexas porque também as pessoas que entraram na direção da UIA, o Vity Nsalambi é um angolano de uma geração um pouco diferente da minha, um pouco mais novo, assim como o Nivaldo Andrade. Há também um percurso de aprendizagem, de internacionalização dessas três pessoas que também nos qualificou muito. Ou seja, não fizemos o percurso exclusivamente no nosso país, no nosso meio, no nosso instituto, tivemos uma formação mais universal.

 

Você já definiu algumas prioridades do que pretende fazer no cargo de secretário-geral da direção da UIA?

Já tenho alguma ideia. Desde o dia 9 de agosto que estamos a trabalhar. A presidente Regina tem uma visão muito clara de reordenamento da UIA. Pretende fazer com que a UIA sirva mais aos propósitos dos arquitetos proporcionando um trabalho mais útil às secções nacionais. Há bastante trabalho que é feito em parceria com outras entidades, com agências das Nações Unidas e outras organizações internacionais, e internamente com as comissões e grupos de trabalho. Há algumas áreas que considero importantes e que estou a pensar. É um trabalho que ainda tem que ser proposto, mas acho que há áreas de trabalho para as quais a UIA poderá ter um papel importante porque não há uma comunicação entre países, entre políticas diferentes, que não têm uma plataforma internacional.

 

O conhecimento que é gerado num ou noutro país acaba por não ter um impacto muito grande. Por exemplo, a questão das favelas. É uma área que acho muito importante, porque é algo que tem um impacto nas sociedades urbanas, não só da América do Sul, mas de quase toda a África e em zonas bastante populosas do Sudeste Asiático. Não existe uma troca de conhecimento entre estes países, porque são países que não estão em rede, não fazem parte de nenhum coletivo específico, mas partilham, e a Índia também, problemas urbanos e sociais muito semelhantes. São questões que são difíceis de tratar e que a UIA tem um papel muito importante, porque todo o conhecimento que possa ser partilhado, redistribuído e aplicado em outros países, poderá ter um impacto enorme na sustentabilidade e na economia de países que vivem com este problema difícil.

 

Ou seja, vocês pretendem promover um intercâmbio de informações para tentar solucionar questões relacionadas à habitação?

Sim, e procurar dar um balanço melhor na distribuição de riqueza. Criar um nível de qualidade de vida mínimo, mais aceitável.

 

Isso também casa com a questão da sustentabilidade, prevista nos ODS da ONU, e tem algum link com questões relacionadas às mudanças climáticas? Como que você acha que deve ser o papel da UIA e dos arquitetos em geral nesse contexto?

Pois esta questão é exatamente o ODS número 11, mas nossa profissão está diretamente e indiretamente associada a um grande número de ODS no que se refere principalmente a políticas urbanas. Depois há uma série de questões que têm a ver com políticas territoriais, nas quais os arquitetos têm menos capacidade de intervir. Mas na questão da cidade, há uma responsabilidade muito grande por parte da classe, não só de quem pratica arquitetura, mas também de quem faz a política na área do urbanismo, que também são arquitetos.

 

Falando da questão da transmissão de conhecimento dos arquitetos entre países, como a UIA pode intervir positivamente nesse processo?  

Estou no final do meu mandato enquanto presidente do Conselho Internacional de Arquitetos Língua Portuguesa (Cialp). Quando, em 2016, percebemos que havia um movimento muito interessante da Codhab (Companhia de Desenvolvimento Habitacional) de Brasília, Distrito Federal, de realizar intervenções diretamente nas favelas, com gabinetes técnicos de apoio local formados por arquitetos em que se fazia um o urbanismo participativo com a população da favela, com uma série de experimentações a nível de micro orçamentos e que era diferente porque tinha a ver com resolver problemas específicos daquele ambiente da favela, assinamos um acordo com o governo de Brasília e oferecemos estágios em gestão urbana para arquitetos africanos. Fizemos isso durante dois anos, até a Codhab ter sido desmantelada com o final do Governo da Dilma.

 

Mas a experiência foi superinteressante porque os arquitetos, que eram todos jovens profissionais, voltaram para Angola, para Moçambique, para Cabo Verde, para seus países, com uma experiência de que era de fato possível trabalhar a favela. Era uma mensagem que não existia em muitas instâncias administrativas na África, porque a política que existia era de cima para baixo, de grandes infraestruturas, de viabilizar os orçamentos de Estado etc. Isso não passava pela microgestão da favela, que só pode ser trabalhada em outra escala, em outra velocidade. Isso criou uma discussão transatlântica muito interessante. Ainda fizemos algumas palestras em Luanda com administradores da gestão urbana brasileiros, que foram apresentar porque no Brasil esta experiência estava a acontecer e era possível. Mas o Cialp tem suas limitações e a gente não conseguiu converter esta aprendizagem de fato. Tem a ver muito como são as leis e como mudar as políticas. Percebi que a gente não tinha condições no Cialp de contribuir mais. Agora julgo na UIA posso continuar este trabalho, numa outra dimensão e com outro papel.

 

Em sua opinião, os arquitetos e as instituições que reúnem os arquitetos, tanto no Brasil quanto internacionais, devem focar mais na questão do desenvolvimento de políticas públicas e em questões de sustentabilidade. Como que isso pode ser feito?

Quando se fala em sustentabilidade, na área da arquitetura e do urbanismo, do meu ponto de vista a questão tecnológica é secundária. Digamos, a revolução tecnológica passa por outras indústrias. A indústria da construção civil vai por arrasto de outras indústrias, ou seja, não é na nossa indústria que se vai fazer essa mudança paradigma e a nossa área há de fazer essa transição quando for a hora, porque é tudo uma questão de macro investimento das economias. Essa transição é algo que tem a ver com grandes operações financeiras.

 

Podemos ter um papel, e o que podemos mudar a nível da sustentabilidade, passa pela sustentabilidade das comunidades, das populações. E esta sustentabilidade tem que criar cidades, ambientes e instituições que permitam que as pessoas vivam não só com dignidade, mas também com ambições dignas. Porque viver com fome, viver sem alimento, viver sem teto, não é viver, é sobreviver. É essa sustentabilidade das comunidades que dará às populações a possibilidade de ansiar, desejar para si próprias um lugar melhor no futuro. Ainda há uma parte muito grande da população que está em estado de sobrevivência e acho isso dramático para os nossos países e para as nossas economias. Essas pessoas poderiam liderar, poderiam ser transformadoras na maneira como o país investe, faz empreendimentos, e as pessoas investem em si, nos seus filhos, no que é seu. Esse investimento não existe porque as sociedades se mantêm e não fazem nada para tirar a percentagem maior da população da indigência. É uma responsabilidade que os governos e a sociedade civil têm, não são só os arquitetos. E isso passa por percebemos que não é só a questão da habitação e de manter a população acima da linha da sobrevivência, mas é também a educação, o sentido de ético da distribuição equitativa de bens, de riqueza e do conhecimento.

 

Nessas questões, há uma série de áreas que o trabalho do arquiteto pode ter um impacto muito grande na sustentabilidade das comunidades. Quando falamos em sustentabilidade, nós arquitetos devíamos pensar nisso, nas pessoas e na vida das pessoas, e não na tecnologia, que é uma coisa para uma percentagem muito pequena da população. Fazer um edifício funcionar completamente a energia solar é fantástico, mas estamos a falar de quê? De uma tecnologia que custa imenso para produzir e principalmente para importar e assim estamos a importar essa tecnologia a preço de quê? A preço de não fazer uma série de outros investimentos que tinham um impacto muito mais alastrado na sociedade, transversalmente.

 

Quer dizer a questão não é tanto tecnológica, mas sim de dignidade para as pessoas com as possibilidades que já existem e a tecnologia vem depois como consequência disso?

Eu acho que sim, acho que temos que ir todos juntos.