IV. Governança urbana e legislação: questões e desafios para uma Nova Agenda Urbana
Como já demonstrado, nos últimos vinte anos, o Brasil protagonizou enorme avanço no âmbito legislativo e institucional, no reconhecimento de direitos e nas políticas sociais. No âmbito institucional a criação do Ministério das Cidades em 2003 congrega diversas ações de desenvolvimento urbano em quatro secretarias nacionais: Acessibilidade e Programas Urbanos, Habitação, Saneamento Ambiental e Mobilidade Urbana. Seguiu-se a institucionalização de dois importantes instrumentos de gestão democrática ao nível federal: Conselho das Cidades e Conferência Nacional das Cidades.
Mais recentemente, a legislação brasileira criou novas ferramentas de planejamento das cidades a partir da regulação de algumas políticas setoriais em âmbito nacional, tais como habitação e regularização fundiária, saneamento ambiental, resíduos sólidos, transporte e mobilidade urbana. Vale citar algumas dessas importantes leis nacionais:
- Lei Federal no 10.257, de 10 de julho de 2001, que dispõe sobre os princípios e as diretrizes fundamentais da política urbana.
- Lei Federal nº 11.124/2005 e Decreto Federal nº 5.796/2006, dispõem sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, criam o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e instituem o Conselho Gestor do FNHIS;
- Lei Federal nº 11.481/2007 e Lei Federal nº 11.952/2009, preveem medidas para regularização fundiária de interesse social em bens da União e normas específicas para Amazônia Legal;
- Lei Federal nº 11.977/2009, dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas;
- Lei Federal nº 11.445/2007 e Decreto Federal nº 7.217/2010, estabelecem diretrizes nacionais para o saneamento básico;
- Lei Federal nº 12.305/10 e Decreto Federal nº 7404/2010, institui e regulamenta, respectivamente, a Política Nacional de Resíduos Sólidos;
- Lei Federal nº12.587/2012, institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana;
- Leis Federais nº 10.048/2000 e 10.098/2000, Decreto Federal nº 5.296/2004, definem o marco regulatório para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida;
- Lei Federal nº 12.836/2013, institui regras para Municípios situados em áreas de risco e/ou que pretendam ampliar seu perímetro urbano.
No sentido de efetivar politicas territoriais a governança urbana avançou com a aprovação da Lei de Consórcios Públicos e sua respectiva regulamentação (Lei Federal nº 11.107/2005 e Decreto Federal nº 6.017/2007) que instituíram novas formas de cooperação entre os entes federativos, ampliando as possibilidades de arranjos institucionais. Segundo dados da Receita Federal do Brasil, o número de consórcios públicos é crescente. Em 2014 registra-se 1263 consórcios públicos de direito público ativos. Todas as regiões do país contam com consórcios, embora a desigualdade regional ainda se expresse, pois, o número na região Sudeste (458) é mais de seis vezes maior que na região Norte (75).
De acordo com a mesma fonte, a atuação consorciada está distribuída principalmente nas seguintes atividades: 31% assistência social; 26% administrativas; 10% saúde; 7% saneamento; 1% segurança e menos de 1% em infraestrutura. Dados que demonstram ainda uma pouca utilização desse instrumento nas políticas de desenvolvimento urbano e em especial metropolitano, onde a cooperação intergovernamental é tão necessária para o exercício das funções públicas de interesse comum.
Com relação à regularização fundiária, nos últimos anos o Brasil fez uma reforma legislativa em nível federal, com o intuito de viabilizar a implementação de ações no nível local, simplificando procedimentos tanto para a integração dos assentamentos na cidade, como para a titulação de seus moradores. Além das leis, anteriormente citadas, foram aprovadas as leis federais nº 11.952 de 2009, que trata da regularização fundiária de terras federais na Amazônia Legal, nº 12.424 de 2011, que trata do registro imobiliário na regularização fundiária urbana, e nº 12.651 de 2012 (Novo Código Florestal Brasileiro), que dispõe sobre a regularização fundiária de assentamos urbanos em Áreas De Preservação Permanente (APPs).
Além dessa reforma legislativa, o Brasil incorporou a regularização fundiária como componente obrigatório nos seus programas habitacionais, bem como de saneamento ambiental em assentamentos irregulares (Saneamento Integrado), além de possuir um programa de apoio específico a ações de titulação, dirigido a estados, municípios e entidades civis sem fins lucrativos. Destaca-se como resultado dessa ação de fomento e regulamentação em nível federal, a incorporação da regularização fundiária na agenda de um conjunto expressivo de municípios brasileiros.
Como resposta aos desafios, recentemente, foi promulgado o Estatuto da Metrópole (Lei Federal nº 13.089/15), que estabelece diretrizes gerais para o planejamento, gestão e execução das funções públicas de interesse comum em RMs e aglomerações urbanas, bem como instrumentos de cooperação interfederativa. Essa lei estabelece para as Regiões Metropolitanas a definição de um conjunto de diretrizes específicas, além das constantes no Estatuto da Cidade, a serem observadas na governança interfederativa, entre as quais se destacam: a implantação de processo permanente e compartilhado de planejamento e de tomada de decisão; a definição de meios compartilhados de organização administrativa e execução das funções públicas de interesse comum; mediante rateio de custos previamente pactuado no âmbito da estrutura de governança interfederativa.
Desde a Constituição de 1988, quando a competência foi descentralizada aos estados (art. 25, § 3º) em cada Unidade Federativa foram adotados critérios e modelos distintos; na maior parte o órgão gestor é estadual, e as estruturas de governança com os municípios ainda são teóricas; os fundos metropolitanos são inexistentes ou frágeis; há poucas ações setoriais concertadas e inadequação dos principais instrumentos de financiamento do desenvolvimento regional.
A superação dos desafios do modelo de urbanização brasileiro passa também pela integração tanto das políticas setoriais no território, quanto pela integração do território em si, nas escalas intra-urbana, regional e nacional. As ações do governo são voltadas para a construção de uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, integrada com a Política Nacional de Desenvolvimento Regional, tendo como eixo condutor o desenvolvimento nacional. Houve avanços significativos na legislação em nível municipal após a promulgação do Estatuto da Cidade. Considerando o universo de Municípios com mais de vinte mil habitantes – cuja elaboração do plano diretor é obrigatória –, a proporção de planos elaborados em relação ao total é ainda maior: em 2009, dos 1644 Municípios brasileiros com mais de vinte mil habitantes, 1433 declararam ter plano diretor, o que corresponde a 87% do total (SANTOS JUNIOR; MONTANDON , 2011).
O Brasil tem adotado de mecanismos de participação popular direta, tais como conselhos, conferências, consultas públicas para construção de políticas públicas. No âmbito federal, por exemplo, foram realizadas 82 conferências nacionais até 2011, mobilizando milhões de pessoas no país (SOUZA et al., 2013). No âmbito da política urbana, foram realizadas cinco Conferências Nacionais das Cidades. Ao longo dessa trajetória, o Conselho das Cidades (ConCidades), órgão consultivo e deliberativo, que integra o MCidades, composto por representantes do poder público e da sociedade civil, passou a organizar as Conferências das Cidades, juntamente com o MCidades. Os integrantes do ConCidades são eleitos durante o processo da Conferência Nacional das Cidades .
Destaca-se que o número de delegados nas conferências nacionais manteve regularidade, 2.500 em todas as 05 edições. Todas as conferências nacionais foram antecedidas de conferências preparatórias municipais (ou regionais) e estaduais. Em 2003, tem-se o registro da participação de 3.457 Municípios na etapa municipal/regional, número que caiu para 2.282 em 2010. Em 2013 foram realizadas conferências municipais em 2.800 Municípios, com a participação de 240 mil pessoas. As conferências estaduais concretizaram-se em todas as 27 unidades da federação.
O texto aprovado na última Conferência reafirma a importância da criação de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano e de um Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU), “com caráter participativo, estabelecendo os objetivos estratégicos da intervenção do governo federal na política de desenvolvimento urbano para os próximos 10 anos”.
Os avanços na criação de mecanismos de gestão democrática das cidades no nível municipal também podem ser notados em pesquisas recentes. A criação de conselhos nos últimos 20 anos pelos Municípios pode ser observada nos dados da última pesquisa MUNIC/IBGE (Tabela 33). Em 1996, apenas 4% dos Municípios com população abaixo de 100 mil habitantes indicaram existência de conselhos das cidades, habitação, transporte, desenvolvimento urbano ou saneamento implantado. Em 2012, esse número atingiu o total de 62%. Observa-se que a presença dos instrumentos de participação guarda relação com o porte das cidades, ou seja, quanto maior a cidade, maior é a presença de conselhos instituídos.
Novamente, podem-se observar avanços legais e institucionais do último período. O desafio é, portanto sua efetivação. Nesse sentido a principal diretriz é de analisar a proposta de projeto de lei que institui a Política, o Sistema e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano, que acredita-se efetivará esses avanços.
Cultura como eixo de desenvolvimento das cidades
A cultura é fundamental na experiência das cidades: significados, hábitos, identidades e pertencimentos. As cidades são a maior invenção do homem. Fazer e habitar a cidade são os nossos maiores fatos culturais. Para que possamos um dia ambicionar novas perspectivas de cidade, precisamos incorporar a cultura como eixo de desenvolvimento urbano.
É nítido que os movimentos urbanos de direito à cidade têm nas expressões culturais a sua principal forma de resistência, emprestando novos significados a urbe. Também é imprescindível considerar que em territórios com espaços e movimentos culturais prevalece a noção de identidade, se fortalecem os vínculos de pertencimento comunitários e, com isso, se reduz a violência. Por isto, recentemente o Ministério da Cultura incorporou-se ao Programa Nacional de Redução de Homicídios, coordenado pelo Ministério da Justiça, com ações voltadas a ocupação e otimização dos equipamentos públicos urbanos.
Os movimentos de ocupação, como Mercado Sul em Taguatinga e o Ocupa Estelita em Recife, entre outros, são essencialmente mobilizações pela reorganização do espaço urbano. O adensamento das cidades e da mobilidade urbana são temas inerentes à cultura, como eixo que permite a convivência diversa, saudável e democrática. Neste sentido, os espaços que habitamos são o campo da nossa experiência cotidiana. Qualificar esse campo não é só uma questão de infraestrutura ou funcionalidade, mas uma questão cultural urgente.
A questão sobre qual tipo de cidade queremos não pode ser separada dos tipos de laços sociais, relação com a natureza, padrões alimentícios e de lazer, tecnologias e valores estéticos e éticos que desejamos. O direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de acessar os recursos urbanos: trata-se do direito de mudar a nós mesmos ao mudar a cidade. (HARVEY, 2008). A necessidade do encontro, do transitar com liberdade e do produzir sentidos emancipatórios para a cidade por meio do convívio é fundamental às pessoas. A exclusão socioespacial é, portanto, sintoma e causa da fragmentação sócio-cultural pela qual o cidadão percebe e vive a cidade.
Aprimorar a legislação urbana
O Brasil avançou de maneira significativa do ponto de vista institucional e legislativo na política de desenvolvimento urbano. Todavia, continuam os esforços na instituição de um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano, tema sobre o qual a sociedade, e em especial o ConCidades vem se debruçando a vários anos. Em 2013, na 5ª Conferência Nacional das Cidades, foi aprovada proposta para criação do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) que visa a instituição de mecanismos de coordenação das políticas intergovernamentais, o que é fundamental em um Estado federativo. Atualmente em discussão, o SNDU deverá, quando implementado, propor mecanismos de articulação entre a legislação setorial urbanística entre si (habitação, regularização fundiária, saneamento ambiental, resíduos sólidos, áreas de risco, gestão metropolitana etc.), com as competências urbanísticas e ambientais da União Federal, Estados e Municípios.
É necessário aprofundar o diálogo com a legislação ambiental, especialmente no que se refere ao licenciamento de empreendimentos, uma vez que, existe uma separação legislativa e administrativa entre o licenciamento urbanístico e licenciamento ambiental.
É indispensável se buscar a aplicação efetiva do ordenamento jurídico, especialmente no que se refere à implementação dos instrumentos de cumprimento da função social da propriedade..
É importante, nesse sentido, inserir o ensino do Direito Urbanístico nas faculdades brasileiras a fim de formar os diversos operadores do Direito (promotores, juízes, defensores públicos, procuradores municipais, cartórios etc.) bem como promover a sensibilização sobre os temas relacionados à política urbana no âmbito do Poder Judiciário.
Descentralização e fortalecimento de autoridades locais
O Brasil é um país considerado altamente descentralizado desde a Constituição Federal de 1988, a qual elevou os Municípios a condição de ente federado, em igualdade com os Estados e a União. Atualmente, a República Federativa do Brasil é formada por 26 estados federados e 5.568 Municípios, além do Distrito Federal.
Os Municípios respondem de forma autônoma pelos assuntos de interesse local e tributos de sua competência, pelo transporte coletivo, pela educação infantil e das primeiras séries do ensino fundamental, pelos serviços de saúde básica, e pelo adequado ordenamento territorial e patrimônio histórico-cultural local. Os temas tratados na Conferência são também competências municipais, a listar: planejamento territorial, governança e legislação urbana, habitação, saneamento, meio ambiente, defesa civil, mobilidade, desenvolvimento econômico local e demais intervenções nos assentamentos humanos.
O momento da realização da Conferência Habitat II coincidiu com o início de um período de importante descentralização das políticas públicas e fortalecimento do municipalismo no Brasil, com desenvolvimento de iniciativas reconhecidamente exitosas, que lançaram mão do Orçamento Participativo, da regularização fundiária e da produção participativa e autogestionária da moradia. A partir da metade da década passada há um aumento do protagonismo do governo federal na instituição de novos marcos legais nacionais, além da implantação de programas e financiamentos massivos, transformando capacidades locais de formulação de respostas adaptadas a questões mais específicas.
A instituição e organização de um adequado sistema de informações poderiam contribuir para empoderar os governos locais, valorizando a capacidade de inovação, que no período anterior contribuiu sobremaneira na formulação de instrumentos e práticas reconhecidas no Estatuto da Cidade e normativos nacionais subsequentes.
Neste sentido o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) vem cumprindo papel importante para as políticas sociais no país, e potencialmente para as políticas de habitação e desenvolvimento urbano. De um lado, as prefeituras são responsáveis pela manutenção e atualização do CadÚnico no seu âmbito municipal; de outro, podem fazer uso dele para o conhecimento de demandas e seleção de beneficiários às diversas políticas sociais.
Esse conhecimento refinado do território urbano dado pelo cruzamento de fontes de informações e bases de dados, passíveis de serem descentralizadas e, inclusive, tornadas pública, podem permitir aos governos locais elaborar ações adaptadas ao contexto, gerando inovações que podem se universalizar.
Deve-se buscar:
- Fortalecer os mecanismos de assistência técnica aos governos locais para a elaboração e a implementação dos instrumentos de planejamento urbano;
- Aprimorar as políticas públicas urbanas alinhadas às diversidades regionais, considerando as ações locais.
Aprimorar a participação e os direitos humanos no desenvolvimento urbano
Nas últimas duas décadas, multiplicaram-se os conselhos municipais dedicados aos temas do desenvolvimento urbano no Brasil. O percentual de Municípios com conselhos passou de 4%, em 1996, para 24%, em 2006, e para 64%, em 2012 (Tabela 33). Sua presença é tanto mais frequente quanto maiores as cidades: em 2012, os conselhos estavam presentes em todos os Municípios com mais de 500 mil habitantes. Já na faixa populacional de até 100 mil habitantes, os conselhos estavam presentes em 62% dos Municípios. As maiores frequências foram observadas nas regiões Sul e Centro-Oeste (respectivamente 86% e 73%) e as menores, no Norte e no Nordeste (56% e 49%).
O aumento do número de conselhos indica uma consolidação das práticas democráticas de construção das políticas de habitação e desenvolvimento urbano. Algumas experiências de participação direta se destacam. Em 2014, a cidade de São Paulo desenvolveu seu Plano Diretor Estratégico (PDE) por meio de um processo participativo e colaborativo amplo com o uso de novas tecnologias sociais (plataformas participativas digitais) e atividades presenciais, seminários, oficinas, diálogo por seguimento e audiências públicas, que resultaram na participação de 25.692 pessoas.
A aprovação do Plano Diretor também foi marcada por disputas acirradas e negociações diversas, com atos de rua, ocupações de imóveis vazios, acampamentos de movimentos sociais em frente à Câmara Municipal nos dias de apreciação e votação do projeto de lei do Plano. Essa dinâmica de participação e pressão política em momentos de aprovação de planos diretores tem se constituído numa das marcas da sociedade e da democracia brasileira.
A governança democrática do território urbano, por meio da cooperação entre os diferentes níveis de governo e com participação da sociedade civil, através não somente dos conselhos de cidades, mas das mais diversas instâncias politicas e sociais, traz formas de construção e efetivação de direitos das mulheres na cidade, da juventude, dos deficientes físicos, relativos às questões étnicas e raciais; além da proteção e uso de bens comuns como, por exemplo, água, por meio dos Conselhos de Bacias, etc.
Os direitos humanos, civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e difusos, garantia do uso publico e comum do espaço urbano, sua gestão democrática, o usufruto do direito à moradia adequada, o acesso à terra e a segurança da posse, a proteção contra deslocamentos forçados, o acesso aos serviços públicos essenciais e com qualidade, e serviços de infraestrutura, água, energia, saneamento e mobilidade são questões que conformam o debate sobre direito à cidade.
Melhorar a segurança urbana
A segurança pública é um dos fundamentos do uso democrático da cidade, na medida em que assegura o exercício de direitos como de ir e vir, de se relacionar, de se comunicar no espaço urbano.
Nos últimos anos, houve aumento na ocorrência de homicídios no Brasil. Em 2002 o total de homicídios registrados no país foi de 49.695 e, em 2012, o número aumentou para 56.337. Se analisados esses dados por região, percebe-se que em todas elas houve incremento do número de homicídios, exceto na Região Sudeste. Em 1992 e 2012, respectivamente, os homicídios na Região Norte eram 2.937 e 6.098, no Nordeste 10.947 e 20.960, no Centro-Oeste 3.676 e 5.505, no Sul 4.704 e 6.643 e no Sudeste 27.431 e 17.131 (WAISELFIS, 2014). Nas RMs, a concentração de homicídios é maior, mas vem caindo relativamente: em 1994 as dez maiores RMs responderam por 62% dos homicídios ocorridos no Brasil e, em 2004, por 55,2%.
Se desagregados os dados segundo critérios de cor e raça para a população jovem, o comportamento das taxas de homicídios no Brasil mostra tendências contrárias, conforme a raça/cor das vítimas: de 2002 a 2010, a taxa de homicídios de brancos caiu de 40,6 por 100 mil para 28,3 por 100 mil, ao passo que, no mesmo período, cresceu a taxa de homicídios de negros, de 69,6 por 100 mil para 72 por 100 mil. O Nordeste é a região que mostra a maior diferença entre as taxas, conforme raça/cor: em 2010, 16,8 por 100 mil brancos (a menor dentre todas as regiões) contra 86,9 por 100 mil negros (a maior). Em 2011, 142 Municípios concentravam 70% das mortes de jovens do país.
Além dos dados factuais, cabe apresentar percepções sobre a violência urbana: pesquisa do Data Popular (2014) nas favelas brasileiras, no ano de 2013, indica que 85% dos seus moradores consideram insatisfatória a segurança pública. Relacionando o aumento da taxa de homicídio e a percepção sobre violência, sugere-se que as pessoas vivenciam a violência de forma diferente, conforme o território, cor/raça e renda, no contexto de cidades segregadas e fragmentadas. De modo análogo, é necessária a construção de políticas públicas universais, mas com focalização nos territórios intraurbanos, como estratégia significativa contra a violência.
Nesse sentido, a focalização de ações em espaços intraurbanos, marcados pela intensa vulnerabilidade social, é uma das estratégias para a prevenção e enfrentamento à chamada mortalidade da juventude negra. A concentração de homicídios de jovens nesses territórios ressalta a intrínseca relação entre violência e vulnerabilidade social. Nesse sentido, uma política de segurança pública não deve prescindir de ações integradas de atendimento social às populações em territórios de intensa vulnerabilidade.
No caso da juventude negra, é no entrecruzamento de variáveis que se explica o fato de serem um grupo social em situação de extrema vulnerabilidade: representam parcela da população com baixa escolaridade e frágil inserção no mercado de trabalho, são vítimas de estereotipia associada à criminalidade, e estão sujeitos à cultura da violência que marca majoritariamente esses territórios.
Políticas sociais e de infraestrutura que incidam nesses espaços devem, portanto, atentar para a dimensão racial que permeia os problemas a serem enfrentados, sob o risco de reforçarem os estereótipos e ampliarem a segregação racial que se reflete nas diferentes taxas de homicídios de brancos e negros. Desta forma, o enfrentamento ao racismo e o combate à cultura da violência devem perpassar pelas estratégias de atendimento das políticas públicas nos territórios de vulnerabilidade.
Também, cabe fazer um recorte de gênero. Recentemente, o IPEA lançou o estudo Violência contra a mulher: femiciídios no Brasil. O estudo estimou que no Brasil ocorreram mais de 50 mil feminicídios no período de 2001 a 2011, o que equivale a aproximadamente 5.000 mortes por ano. Segundo Meneghel e Hirakata (2011) feminicídios é a morte de mulheres decorrente de conflitos de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres. O estudo aponta ainda que a Região Nordeste apresenta a maior taxa de mortes por gênero, chegando a 6,90, para o universo de 100 mil mulheres entre 2009 e 2011 (GARCIA et al., 2013).
Outro fenômeno que tangencia a questão da segurança urbana são os acidentes de trânsito, importante causa de mortalidade no Brasil, em que pese a aprovação da Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), que dispõe sobre um conjunto de normas preventivas e repressivas com vistas a diminuir os acidentes.
Com efeito, levando-se em conta o país como um todo, houve uma redução da taxa de óbitos, de 22,6 por 100 mil para 20,1 por 100 mil habitantes, entre 1996 e 2009. Contudo, também aqui o problema se manifesta de forma diferenciada no território, conforme mostra o crescimento das taxas, entre 1996 e 2009, nas regiões Norte e Nordeste – de 14,3 por 100 mil para 18,6 por 100 mil, no Norte; e de 13,6 por 100 mil para 18,3 por 100 mil, no Nordeste (Tabela 34). Conforme atualização da pesquisa do IPEA, o custo da violência no trânsito urbano é de 10 bilhões de reais por ano, enquanto o custo dos acidentes nas rodovias é de R$ 40 bilhões/ano.
Entre as metas a serem perseguidas para melhorar a segurança urbana a principal é de constituir políticas de segurança pública integrada tendo como base o território, uma vez que a violência, mesmo do trânsito, é localizada e muitas vezes concentrada, revelando a correlação com os fatores urbanísticos ou espaciais.
A violência por gênero perpassa por questões culturais, sociais e econômicas. Para construir politicas sociais pautadas na equidade de gênero faz-se necessário, por exemplo, investimentos financeiros e humanos em ações como:
- fortalecimento dos mecanismos institucionais de defesa de direitos, como as ações previstas na Lei Maria da Penha (11.340/06);
- fortalecimento dos espaços de participação e controle social, como conselhos e conferências;
- investimentos financeiros em políticas públicas de proteção à mulher vítima de violência, bem como ações de profissionalização e geração de renda.
Aumentar a inclusão e a equidade social
Nos últimos vinte anos houve melhoria significativa no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do Brasil, de 0,493 em 1991 para 0,727 em 2010 (Tabela 35). Desagregando os dados por região, no mesmo período, é possível notar a evolução do índice para todas as regiões do país, inclusive com crescimentos notáveis para as regiões Norte e Nordeste (valores respectivos do IDH em 1991 e em 2010: Norte 0,305 e 0,609, Nordeste 0,291 e 0,588, Sudeste 0,447 e 0,705, Sul 0,455 e 0,716, Centro Oeste 0,408 e 0,693).
Considerando os dados por cidades com menos de 100 mil habitantes nas regiões Norte e Nordeste, nota-se ainda mais o incremento do índice, cujos valores do IDH em 1991-2010 eram 0,300 e 0,605, e 0,290 e 0,587, respectivamente. Para as mesmas regiões, e no mesmo período, cidades entre 1 e 5 milhões de habitantes, seguem o mesmo comportamento (no Norte 0,542 e 0,742; no Nordeste 0,563 e 0,764). Apesar do crescimento do IDH por Município (IDHM) e, em particular, para as regiões Norte e Nordeste, essas regiões mantêm os menores IDHM brasileiros.
Outro índice de qualidade de vida no Brasil é o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), que mede o nível de inclusão/exclusão e vulnerabilidade social considerando as dimensões ambiental, cultural, econômica, jurídica e de segurança por Município. O IVS teve redução, em uma década (entre 2000 e 2010), de 0,446 para 0,326 (Tabela 36). Separando o dado por região, percebe-se uma redução contínua do índice (da exclusão) nos últimos anos. Embora as regiões Norte e Nordeste sigam a tendência de redução, elas mantêm níveis elevados quando comparados com as demais regiões brasileiras, 0,639 para 0,474 e 0,602 para 0,463, respectivamente.
No mesmo sentido, segue a análise por Município, com diminuição contínua entre as cidades, considerando as com menos de 100 mil habitantes e as com mais de 5 milhões. Os Municípios com menos de 100 mil habitantes do Sul e Sudeste do Brasil, em 2000, apresentam os melhores Índices de Vulnerabilidade Social, de 0,358 e 0,379, enquanto no Norte e no Nordeste os índices são de 0,643 e 0,604. Em 2010, para as cidades na mesma faixa de população, no Sul o índice é de 0,240, no Sudeste é 0,269, no Norte e Nordeste são de 0,480 e 0,466, respectivamente.
Nota-se que as políticas sociais do Brasil no último período foram capazes de melhorar a qualidade de vida da população, mas ao espacializarmos os resultados são reveladas diferenças regionais. Por exemplo, os índices de vulnerabilidade nas cidades do Norte e Nordeste, uma década depois, ainda são maiores que os índices de 2000 dos Municípios do Sul e Sudeste do país.
No espaço urbano, uma população com alta vulnerabilidade social é a população em situação de rua, que é estimada em 50 mil pessoas no Brasil localizadas nas 75 maiores cidades brasileiras, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (BRASIL, 2008). Essa população, em sua maioria, são homens (82%), entre 25 e 45 anos (54%), com primeiro grau incompleto (48%), que exercem atividades remuneradas (70,9%) e conseguem fazer pelo menos uma refeição por dia (81%). A maioria das pessoas em situação de rua costuma dormir na rua (69,6%). Um grupo relativamente menor (22,1%) costuma dormir em albergues ou outras instituições. Apenas 8,3% costumam alternar, ora dormindo na rua, ora dormindo em albergues.
São pessoas com dificuldade ao acesso às políticas públicas, principalmente à habitação. A ausência de documentos, somada à ausência de endereço fixo e diversas passagens por equipamentos sem resolutibilidade dificultam a inclusão em programa habitacional.
Atualmente, a população em situação de rua é referendada pelo Programa Minha Casa Minha Vida na Portaria do Ministério das Cidades nº 595 de 2013, como opção de priorização do gestor municipal. Entretanto, ainda são poucos os que optam pela inclusão dessa população.
Como forma de garantir a superação da situação de rua, o Brasil instituiu, por decreto presidencial, uma Política Nacional para a População em Situação de Rua, e estabeleceu o Comitê Intersetorial de Avaliação e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua – CIAMP Rua. Tal Comitê prevê a participação do Ministérios das Cidades e outros oito Ministérios, com a função de pensar as possibilidades de inclusão e viabilização dos acessos às políticas públicas para essa população.
Outras dimensão da inclusão no espaço urbano, trata-se da inclusão de pessoas no espaço virtual. Há um importante esforço do estado brasileiro para a inclusão digital, permitindo que o cidadão exerça a sua participação política na sociedade do conhecimento. Nesse sentido, por exemplo, entre 2005 e 2013, passou de 13,6 para 42,4 milhões de domicílios com acesso a web no Brasil. As inúmeras iniciativas nessa área, de múltiplos agentes públicos, visam garantir a disseminação e o uso das tecnologias da informação e comunicação orientadas ao desenvolvimento social, econômico, político, cultural, ambiental e tecnológico, centrados nas pessoas, em especial nas comunidades e segmentos excluídos.