“Vamos melhorar o CAU, mudar o que for preciso e valorizar a arquitetura”, exclamou Nadia Somekh imediatamente após a apuração dos votos na 108ª Reunião Plenária do CAU/ BR, ocorrida em 14 de janeiro de 2021.
Foi com esse intuito que a arquiteta, professora emérita da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (FAU/ Mackenzie) e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/ USP), que já fora conselheira da União Internacional dos Arquitetos (UIA) e do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), diretora do Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, presidente da Empresa Municipal da Urbanização (Emurb) e secretária de Desenvolvimento Econômico de Santo André, foi eleita pelo colegiado de conselheiros federais da autarquia após um longo processo precedido pela eleição da sua chapa CAU+Plural, de São Paulo. Esta última, realizada em outubro de 2020, registrou a maior participação de arquitetas e arquitetos na história do CAU/ SP.
As propostas de Nadia Somekh para o CAU/ BR foram apresentadas naquela ocasião: enfrentar junto à sociedade os desafios da crise econômica e do trabalho, com atenção à diversidade; apoiar diversas formas de empreendedorismo, cooperativismo e qualificação dos escritórios; diminuir a vulnerabilidade das moradias por meio do programa Mais Arquitetos; estimular programas inovadores, a exemplo do CAU Educa; e sensibilizar a população quanto à importância da arquitetura e urbanismo, aproveitando a realização do 27º Congresso Mundial de Arquitetos (UIA2021RIO). A recém-eleita se propõe ainda, de forma “democrática e participativa”, buscar a coesão das ações do conjunto autárquico do CAU (CAU/ BR mais CAU/ UFs) e das demais entidades do Colegiado das Entidades Nacionais de Arquitetos e Urbanistas do Brasi (CEAUl): ABAP, ABEA, AsBEA, FNA, IAB e FeNEA, valorizando a responsabilidade técnica, o direito autoral e reduzindo a burocracia.
Você chegou a temer que a sua candidatura fosse impugnada em São Paulo?
Confesso que fiquei muito nervosa, mas acredito que estávamos legitimadas pelos votos, quase 12 mil. É importante ressaltar que o número de votantes aumentou para 50% (na edição passado foram 30%). Não é muito, temos que aumentar a conexão do CAU com os arquitetos – é uma parte da nossa plataforma. Mas 12 mil votos não dá para jogar fora. Fiquei muito tensa por dois meses. Sou um pouco idealista, acho que nós arquitetos temos de ter coesão, não podemos querer eliminar o outro.
Quando começou a atuar no CAU?
Quando ele não existia. Eu era do COSU [Conselho Superior] do IAB, entrei em 2008. Nós batalhamos muito para conseguir que o Conselho existisse. Agora que se passaram 10 anos, a batalha é por um Conselho mais contemporâneo. Fui conselheira estadual na primeira gestão, de 2011 a 2014, e achei um horror, sobretudo as plenárias. Fiquei por três anos e me distanciei. Em 2017 montamos uma chapa para mudar o CAU. Aí pensei: “então vou para o federal, tudo ou nada!” – porque o conselheiro federal ou elege a chapa, ou não vai. Montamos uma chapa com vários arquitetos, liderada pelo Nabil Bonduki e por jovens. Conheci muita gente nova, gente boa. Fomos eleitos, mas não levamos.
Fui conselheira por três anos, sem grande conexão com o Conselho – não era convidada para muitos eventos -, então percebi a fragmentação do CAU/ BR. Conforme os objetivos da chapa, me propus a aumentar a representatividade feminina, apoiar o Congresso [Mundial de Arquitetos] – pois fui conselheira da UIA desde 2008. Em 2014, ganhamos o Congresso do Rio [UIA 2020 RIO, posteriormente adiado para 2021], com Sérgio Magalhães liderando como presidente do IAB, e entrei na comissão de planejamento [do CAU], porque sou uma gestora pública e acadêmica. Falei: “vamos ajudar a planejar o CAU”. Mas fiquei decepcionada, porque a tal Comissão de Finanças e Planejamento é muito mais financeira, pelo menos nos três anos em que estive lá. Tentei colocar uma perspectiva de articular o financeiro às marcas de gestão, levei um consultor, mas o Conselho Diretor não aceitou. Isso tudo me deu a vontade de desfragmentar a ação do Conselho – chamei de “heroica” a fase dos primeiros dez anos do CAU, que o consolidou, mas agora queremos um Conselho contemporâneo, que valorize a arquitetura, conforme sua missão, e possa trazer mais perspectivas para a sociedade valorizar nossa arquitetura e nossos arquitetos.
Os três objetivos que eu me coloquei, embora fragmentados, foram a Comissão de Equidade de Gênero (uma marca da gestão passada); os debates preparatórios para o congresso, porque acho que o legado do evento mundial é a sociedade entender e valorizar o trabalho do arquiteto; e levar a arquitetura para o interior do Brasil. Aprendi muito nestes três anos em que fui conselheira sobre o “Brasil profundo”, as disparidades que temos no país. Conhecendo os conselheiros e as realidades dos estados, percebi o quanto somos díspares e aprendi a valorizar as diferentes especificidades dos estados.
Evidente que a sua motivação em concorrer à presidência foi a insatisfação com experiências passadas com o Conselho. O seu programa mencionava a necessidade de ‘marcar mudanças’. Quais são elas? Como começar?
Já começamos. Eu trabalhei por cinco anos na ação regional [da Câmara Municipal do Grande ABC, 1997-2002], e lá aprendi sobre um instrumento que se chama Planejamento Estratégico Situacional. Desde então, utilizei-o na EMURB, na Diretoria do Mackenzie, no CONPRESP, no DPH. Ou seja, onde assumi postos de direção, usei o tal instrumento. Trouxe um consultor e desde a primeira semana começamos a fazer o Plano de 100 Dias para saber o que vamos construir; não sou eu quem vai dizer. Envolvi os coordenadores das comissões, chamei os representantes dos CAUs/ UFs e definimos os problemas que vamos enfrentar.
Nesta semana [a entrevista foi realizada em 5 de fevereiro de 2021], estamos ampliando as oficinas para ver, a partir das estratégias que já definimos, quais as ações que faremos. Depois vamos priorizar, porque em três anos não dá para fazer tudo. Este ano é para revisão do Planejamento Estratégico – acho que o que foi feito até agora é muito “para inglês ver”, muito etéreo. Sou uma pessoa muito concreta. Quero saber que tipo de ações precisamos prever e, ao mesmo tempo, na nossa contemporaneidade líquida, precisamos deixar aberturas – não dá para contingenciar tudo. Então tem que ser concreto, com etapas, mas aberto para acolher as incertezas.
Você consegue resumir o diagnóstico feito até agora nesse Plano de 100 Dias?
Primeiro tem a questão do SICCAU [software de serviços online prestados pelo CAU]. Temos de estar no topo da tecnologia, atualizados. Segundo, a questão da fiscalização. Nossa tarefa é mostrar para a sociedade o que o bom arquiteto faz, então temos que ter uma fiscalização orientativa, valorizando as boas práticas, por isso estamos pensando em mudar o conceito – entender sobre a precarização do trabalho, a questão dos honorários, do salário, a questão da reserva técnica, que é um tiro no pé dos arquitetos.
O terceiro problema tem a ver com a gestão do CAU e a articulação interna. Houve até agora uma cisão entre o CAU/ BR (regulador) e os CAUs/ UFs, que executam. Estamos ouvindo as necessidades dos estados, conhecendo os problemas. Por exemplo, no Amazonas há uma situação de calamidade. Fiz uma reunião com o Fórum de Presidentes e eles ficaram felizes por serem ouvidos, pois existia tal desconexão. O quarto problema tem a ver com a Resolução 51 [de 12 de julho de 2013] e com a Lei do CAU, que diz que temos atribuições privativas. Não é que queiramos tirar atribuições dos outros profissionais, mas definir nosso campo de trabalho.
O quinto tem relação com a qualidade de ensino. Os cursos EAD… Arquiteto não pode se formar seguindo um tutorial. Temos que ter formação de desenho, precisamos de contato. Ser arquiteto não é uma questão de consumir um diploma, é de responsabilidade com a saúde da população. Aí entra o CAU Educa – que tem a ver com o nosso futuro, mostrando para as crianças a importância da cidade, dos edifícios, e o meu projeto pessoal, que é o Mais Arquitetos, inspirado no programa Mais Médicos. A minha prioridade, como presidente, é mostrar que o arquiteto tem uma tarefa muito importante de melhorar a saúde da população através da melhoria das habitações dos mais pobres. A sociedade não conhece nosso trabalho. Quero fazer um fundo para assessoria técnica, melhorar a vida dessas pessoas, é o que está me motivando.
Estou muito feliz de ter espaço e oportunidade na minha idade, porque temos recursos e vontade de valorizar a arquitetura. Precisamos mostrar que é isso que falta para melhorar as casas da periferia e as condições de saúde das pessoas. Estamos perdendo a possibilidade de mostrar que o Brasil precisa de projeto. Outra questão é trabalhar para a ‘maioria dos arquitetos’, conforme um discurso em voga. Quem é essa maioria? Não são só aqueles 200 mil que pagam o CAU. Tem professor que não é registrado, mas que precisa ter Responsabilidade Técnica, pois faz pesquisa e pode trazer insumos de inovação; tem servidores públicos que não conseguem tirar RT – eu mesma queria fazer um RRT [Registro de Responsabilidade Técnica] dos serviços que fiz na EMURB, como presidente, e não consegui. Então tem que ampliar o CAU para não ser somente para os arquitetos de projeto, de escritório, de mercado. Atender a eles, mas pensar em como ampliar para a maioria; da mesma forma as escolas, pois temos quase 875 e somente 190 são registradas. Não estamos tendo conexão com o nosso público.
A última é a questão da redistribuição. Entrei com esse discurso de que São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, concentram muitos arquitetos e recursos. Precisamos prever um fundo de apoio para assessoria técnica e outros. Quero que os recursos sejam melhor distribuídos. O Brasil precisa de redistribuição para reduzir as grandes desigualdades existentes.
Você sente uma resistência ou um clima favorável para a criação de fundos?
Em princípio eu imagino que ninguém irá se opor. Os presidentes estão precisando de apoio. Estou trabalhando para isso, para o CAU/ BR apoiar os CAUs estaduais.
Entre os pontos descritos no diagnóstico, me chama atenção a fiscalização orientativa. Do que se trata?
Têm várias coisas aparecendo. Não sei se já viu, mas tem oferta de projeto por R$ 350,00. Temos que ir atrás, estimular a Responsabilidade Técnica, orientar os arquitetos e os escritórios de arquitetura a respeitarem a tabela de honorários, mas neste momento de crise econômica, como podemos penalizar os escritórios? Então, é uma situação de orientar a necessidade de valorizar o arquiteto e aqueles que têm boas ações. Profissionais que são responsáveis, que têm ações positivas. Vamos fazer um “selo de boa qualidade”, para mostrar para a população que aquele [profissional] é melhor do que outro por estar trazendo o que é socialmente necessário.
Você fala sobre investir em uma plataforma para melhorar a comunicação interna e permitir que os arquitetos se manifestem. Como isso seria estruturado?
São várias propostas. A ideia de coesão é o que falta nesse projeto Brasil, é a gente se unir. É isso que me decepcionou na eleição, achar que colegas queriam eliminar nosso trabalho de forma injusta. Ficamos seis meses montando a plataforma, tínhamos reuniões semanais. Durante a pandemia eu fiz um curso de pós-doutorado, na perspectiva de pensar como a gente pode trabalhar a inovação no conteúdo do CAU.
Aprendi com as arquitetas mais jovens o quanto a gente sofre com o machismo. Fui a primeira diretora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, sempre tive posições de liderança, mas não sentia essa discriminação. Mas no Conselho, nos grupos de trabalho, no IAB, senti bastante. A convivência com arquitetas mais jovens me conscientizou da invisibilidade que às vezes temos, para poder valorizar os homens na arquitetura. Teve um ciclo de debates que organizamos, na Comissão de Equidade de Gênero, no Brasil inteiro, e eu fiquei impressionada de ver como mulher dá crédito, acolhe, trabalha horizontalmente. Isso é importante no Conselho: ter essa coesão via compartilhamento, via horizontal, via colaboração, cooperação, que é algo feminino.
Uma das suas propostas é que essa Comissão se torne permanente, certo?
Sim, nos estados também, em conjunto com o fortalecimento do CEAU. Acho que o CAU tem um papel específico, mas o IAB também, assim como a ABAP, ABEA, AsBEA e FNA. Temos que valorizar o papel de cada entidade e ampliar essa perspectiva. É o conjunto das entidades que irá valorizar a profissão do arquiteto.
Em conjunto, a sua fala é sobre um CAU mais acolhedor – aos seus e à sociedade. Acho que essa é basicamente uma grande linha da sua gestão.
Acho que o feminino entra por aí, no acolhimento.
Qual a origem do problema da falta de comunicação do CAU/ BR com os CAUs estaduais?
Acho que é a estrutura do CAU, que foi formatada quando o Conselho precisava se constituir. É uma visão de que o CAU/ BR é uma instância superior. Não é. Somos um CAU único. Para funcionar bem, acredito que o CAU precisa ter essa unicidade. Então a origem é um equívoco com relação à hierarquia, que não existe, e também com a falta de clareza – cada um começou a trabalhar de acordo com as condições que estavam dadas e acho que se demorou a perceber que havia essa fragmentação que impedia as ações de serem mais elaboradas. Então estamos precisando de resultado, e ele virá dessa conexão.
Tem algo delineado sobre as ações prioritárias da sua gestão?
Vamos decidir nas oficinas, mas pincelei aqui o meu desejo. Tem que ter ressonância no coletivo, pois é coletivamente que vamos decidir. O que queremos é coesão a partir das oficinas e das reuniões plenárias próximas.
A formação é um ponto crítico quando se pensa em um profissional que seja útil à sociedade. Você fala em trazer a escola para falar no CAU, acolher os estudantes.
Sim. Os estudantes não têm percebido a importância do Conselho, então teremos que chegar neles. É algo que vamos precisar construir. Também lutar pela qualidade da formação do arquiteto com esse viés que você falou agora. Não é somente fazer projeto “star system”, temos que formar o arquiteto-cidadão. É algo que precisa ser disseminado nas escolas.
Tem uma parte interessante do seu programa sobre o ‘fortalecimento institucional do CAU, demandando ações parlamentares. Caminhar para além da harmonização até então realizada’. Poderia explicar melhor?
Tem a ver com a Lei de Licitações, que já trabalhamos para melhorar o texto, mas se vê que a CBIC [Câmara Brasileira da Indústria da Construção] está contra. Em reunião com o CEAU, decidimos que vamos fazer um grupo de estudos para informar os arquitetos a respeito.
Temos uma assessoria parlamentar que nos informa sobre os projetos de lei – temos que filtrar o que nos interessa, por exemplo, o monte de ações que pretendem acabar com os Conselhos. Por isso, temos que mostrar qual é o valor social do CAU. Temos que resgatar, não só para a população, mas também para os representantes, o valor do Conselho, nos mostrar socialmente necessários. Acho que essas ações que estamos prevendo apontam para um caminho socialmente necessário ao CAU. Acho que precisamos ‘botar o bloco na rua’, mostrar o nosso valor e a quem podemos ser úteis. É essa nossa tarefa: proteger a sociedade, mostrando o que somos capazes de oferecer.
(Por Evelise Grunow, revista PROJETO Anuário 2021 – Março 2021)