O assunto é grave e não pode ser encoberto por meias palavras. É preciso ser direto: Michel Temer corre o risco de passar para a História como o presidente da República que autorizou em definitivo a realização de licitações de obras públicas sem projeto!
É o que vai acontecer se o presidente em exercício sancionar a Lei de Responsabilidade das Estatais, aprovada no dia 21 de junho pelo Senado, sem vetar o uso da “contratação integrada” como modalidade de licitação das cerca de 150 estatais da União, 70 dos Estados, nove do DF e dezenas ligadas a Municípios. A permissão é válida também para a sociedades de economia mista e subsidiárias.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e mais nove entidades nacionais do setor de projeto de construção civil defendem o veto parcial da futura lei, para a exclusão de tal excrescência, que levanta a suspeita de que as empreiteiras ainda atuam no Congresso, apesar de todas as relações espúrias levantadas pela Operação Lava-Jato.
A autorização se fez com a incorporação da “contratação integrada” entre os regimes de licitação a serem utilizados pelas estatais e empresas nas quais o Estado tenha participação. Nessa modalidade, a contratação é realizada apenas com base em um “anteprojeto de engenharia” apresentado pelo contratante. Tudo o mais, fica por conta da empreiteira contratada.
Ou seja, “a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto”. E anteprojeto é descrito como uma “peça técnica com todos os elementos de contornos necessários e fundamentais à elaboração do projeto básico”. Note-se: não é sequer um projeto básico de arquitetura ou engenharia, que nunca se restringia a especificar apenas “contornos”.
Leia-se nas entrelinhas a legalização de um promíscuo acasalamento entre quem projeta e quem constrói, o que inviabiliza que o Estado e os órgãos de controle detenham parâmetros seguros para garantir a realização de boas obras, com especificações completas, materiais de qualidade, custos justos e prazos adequados.
A “contratação integrada” é um regime especial de licitação que faz parte do polêmico RDC (Regime Diferenciado de Contratações Públicas) criado pela Lei 12.462/2011, para as obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas e Paralimpíadas desse ano e, aos poucos, estendido para os empreendimentos do PAC, do SUS, do DNIT, de presídios e outros. O RDC virou, enfim, uma espécie de “Lei de Licitações do B”, para as obras públicas, vigorando em paralelo à Lei Geral de Licitações (8.666/1993).
Os fatos têm demonstrado que os argumentos de que o RDC encurtaria os prazos das obras e evitariam aditivos contratuais caíram por completo. São emblemáticos os casos do VLT de Cuiabá e do aeroporto de Fortaleza. Sem falar de outros exemplos de obras que, por falta de projeto completo, mesmo sem uso do RDC, resultaram em desastres recentes como a queda de um viaduto em Belo Horizonte e o rompimento da passarela Tim Maia no Rio.
Nada disso pesou na consciência dos congressistas. Em discursos aparentemente sérios, saudaram a futura lei de “responsabilidade” como a restauração da transparência e moralidade nas empresas públicas. No entanto, louvavam o desastre anunciado. De que adiantará exigir uma carência de três anos para políticos ocuparem cargos em estatais se o instrumento para facilitar atos ilícitos estará à disposição de seus dirigentes e executivos? Se tal irresponsabilidade prevalecer, continuaremos assistindo às situações expostas pelo TCU e nas ações do Ministério Público e da Polícia Federal.
É oportuno lembrar que o RDC é herança do regime simplificado de licitações da Petrobrás, com regras específicas fixadas pelo Decreto 2.745/98, já declarado inconstitucional pelo Tribunal de Contas da União por prejudicar o controle externo e facilitar a prática de ilícitos, conforme afirmou o ministro Vital do Rêgo, relator do caso, em junho de 2015. O assunto segue pendente de decisão do Supremo Tribunal Federal. Cabe, assim, perguntar: se o uso da “contratação integrada” já se mostrou desastroso em uma estatal, o que dizer de sua utilização genérica por centenas de empresas públicas e sociedades de economia mista de todo Brasil?
O projeto da Lei de Responsabilidade das Estatais estabelece que a “contratação integrada” deve ser empregada “quando a obra ou o serviço de engenharia for de natureza predominantemente intelectual e de inovação tecnológica do objeto licitado ou puder ser executado com diferentes metodologias ou tecnologias de domínio restrito no mercado”. se puderem ser executados com diferentes metodologias ou tecnologias de domínio restrito no mercado”. Ou seja, as mesmas argumentações previstas na lei do RDC, o que não impediu o uso da “contratação integrada” para obras que não se encaixam em nenhum dessas premissas tais como a “pavimentação e qualificação das áreas públicas do entorno do estádio Beira-Rio”, em Porto Alegre; “ampliação do pátio de aeronaves” e “construção da torre de controle” do aeroporto de Salvador, do chamado “legado da Copa”. Ou a modernização de rodovias como a BR-381/MG, BR-163/PA, BR-163/364/MT e BR-261/ES, entre dezenas de obras e projetos do DNIT.
Mais uma vez menosprezam a inteligência dos engenheiros, arquitetos e urbanistas do País e, pela via da “contratação integrada”, continuarão arrasando a reputação da tecnologia construtiva nacional e dos profissionais brasileiros.
Oportuno acrescentar que o previsto no PLS 555/2015, em todos os capítulos que tratam de obras públicas, conflita com a revisão da Lei de Licitações em discussão no próprio Senado (PLS 559/2013), com debates abertos com vários dos segmentos que podem contribuir na matéria. Da mesma forma como ocorre com a Comissão da Câmara que estuda o assunto desde o ano passado.
Ignora, ainda, o recente “Pedido de desculpas e manifesto por um Brasil melhor” que a segunda maior empreiteira do país, a Andrade Gutierrez, apresentou à nação, após assinar acordo de leniência motivado pela Operação Lava-Jato. Para acabar com a corrupção que contamina o setor da construção civil, a empreiteira agora defende a obrigatoriedade de elaboração de projeto executivo completo antes da licitação de qualquer obra, algo que até há pouco tempo também menosprezava.
É certo que a Lei 8.666/1993 precisa ser atualizada, mas o Brasil não pode conviver com duas leis de licitações diferenciadas para obras públicas. O Ministério da Transparência tem uma ótima oportunidade para estabelecer ordem na casa, se assim orientar o grupo de trabalho que recém constituiu (mais um!) justamente para tratar da revisão da lei de licitações em vigor.
Antes, porém, o presidente Michel Temer precisa ter o bom senso para salvar o país e sua biografia, livrando o país desse consciente atentado contra a gestão pública e o desenvolvimento científico e tecnológico nacional.
Publicado em 21/06/2016