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Memória: a luta do arquiteto Clóvis contra a “arquitetura sem arquitetos”

 

 

O arquiteto e urbanista Clóvis Ilgenfritz da Silva, falecido em 23 de novembro de 2019,  nasceu em Ijuí, uma das mais populosas cidades da região noroeste do Rio Grande do Sul. Formado em 1965 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Clóvis dedicou sua vida profissional para trabalhos em habitação popular, ainda que também tenha atuado no mercado, sendo o criador da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), aprovada pelo Congresso Nacional em 2008. Ele apresentou o projeto pela primeira em 2002, quando foi deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Quatro anos depois, na legislatura seguinte, seu colega arquiteto e urbanista Zezéu Ribeiro, também deputado pelo PT, reapresentou o projeto, que depois virou a Lei 11.888/2008.

 

Atuou no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) quando este ainda era o conselho dos arquitetos e urbanistas. Lá, começou o embrião do que viria a resultar na lei décadas depois, com uma comissão formada na década de 70 para debater o tema com colegas interessados na área. Foi o primeiro presidente do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS), presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), vereador de Porto Alegre por três vezes e secretário municipal de Planejamento, deputado federal, conselheiro e vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS).

 

A extensa carreira política não se resume aos cargos listados, mas tudo isso já é suficiente para fazer de Clóvis Ilgenfritz da Silva pioneiro na área da habitação social, que sempre foi sua principal bandeira. “A assistência técnica para habitação popular veio como uma necessidade para o país e para a população, com a presença do arquiteto e urbanista, conseguir melhorar as habitações no Brasil e atingir as pessoas que nunca tiveram assistência de ninguém”, disse. Confira a seguir a entrevista completa, de 2017, com o arquiteto e urbanista.

 

Como a sua trajetória profissional se encontrou com a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social?
Desde estudante sempre tive muito interesse em conhecer essa área que chamavam “arquitetura sem arquitetos”: a maior parte dos trabalhos de assessoria de atendimento técnico com as famílias – com as pessoas – era feito por engenheiros, desenhistas, empreiteiros ou por ninguém. Não tenho nada contra estes profissionais. No entanto, no histórico brasileiro, a arquitetura, que é a mais antiga das profissões da área da construção, teve um momento onde foi relegada ou não foi estimulada por influência da industrialização.

 

Napoleão Bonaparte criou o chamado “engenheiro politécnico”, que fazia de tudo. A arquitetura era feita por profissionais que poderiam ser chamados de arquitetos, embora a maioria fosse autodidata, e se aproximavam muito mais dos artesãos do que dos trabalhadores da indústria. Assim, o engenheiro politécnico, que no Brasil passou a ser engenheiro civil, assumiu, garantido pela legislação, as mesmas atribuições do arquiteto, embora não tivesse estudo para isso. O arquiteto faz 10 semestres de projeto e o engenheiro faz um, para aprender o que é. A rigor é bom, porque ele deve saber ler um projeto, mas projeto quem faz é arquiteto.

 

Eu trabalhei no CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) e lá nós tínhamos muitos conflitos com as prefeituras, que por qualquer coisa criavam obstáculos para as famílias fazerem suas casinhas. As pessoas chegavam no balcão e eram exploradas. Diziam para elas: “Você vai ter que fazer um projeto, uma planta. Se não tiver como, a gente dá um jeito. Temos quem faça”. Já era corrupção. Os profissionais, engenheiros ou arquitetos, eram os “assinadores” dos projetos, mas não eram eles que faziam as plantas. E todas essas “etapas” eram cobradas das pessoas. Eu sempre me preocupei com essas coisas.

 

Quais foram os seus primeiros trabalhos de habitação popular?
Nos primeiros anos de formado – me formei em 1965 – tive uma sociedade com os colegas Inês D’Ávila e Rui Fiorin. O Inocoop (Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais), órgão criado pelo BNH (Banco Nacional da Habitação), credenciava equipes por meio de editais públicos. Eu e a Inês, principalmente, porque depois o Rui saiu, fizemos muitos projetos para eles. Inclusive, acho que o maior projeto de Porto Alegre fomos nós que fizemos: Condomínio Jardim América. A gente fez esse projeto quando o BNH ainda permita que profissionais e interessados trabalhassem juntos (escolhessem terreno, debatessem projeto etc.).

 

Livros debatem o legado e o futuro da Assistência Técnica de Habitação Social a partir de experiências iniciadas por Clóvis

 

Na época, quais eram as condições para projetar e construir habitações populares?
O Banco Nacional de Habitação tinha regras muito severas quanto ao tamanho dos centros de habitação popular. A gente sempre teimou muito: queríamos fazer as casas melhores, maiores, e o BNH não deixava. Fui ao Rio de Janeiro falar com o presidente do Banco, Maurício Schulman. Eu queria fazer as casas e apartamentos 10% ou 15% maiores e ele me disse: “Não pode mudar nada. O que nós queremos é que cada brasileiro seja um proprietário”. E eu respondi: “Nem que seja de uma coisa ruim?”. Ele gostou de mim, viu que eu era meio afoito, além de líder do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul (SAERGS), eleito presidente do por três vezes.

 

Voltei e falei com meu pai, Ruben Kessler da Silva, que tinha uma madeireira em Ijuí (RS). Nós a transformamos em construtora e entramos em concorrências que tinham projetos de nossa autoria. Ganhamos algumas. Provei na prática que era possível fazer uma casa maior e melhor com o mesmo dinheiro. Isso que nós pegamos terrenos difíceis, onde a fundação era maior do que a casa. Meu pai também foi prefeito de Ijuí e as coisas que ele fez são notórias até hoje. Projetou e iniciou a construção da Usina do Passo de Ajuricaba, que hoje leva o nome dele, e é a única usina pública municipal do Rio Grande do Sul.

 

A gente sempre construía com lugar para carro, com a possibilidade de aumentar o projeto e já projetava o aumento. Outra inovação que fizemos foram os forros de concreto ao invés de madeira, que em alguns anos começava a estourar. E ao invés de colocar azulejos até o teto no banheiro e na cozinha, como estava previsto, colocávamos escaiolas, uma técnica milenar que poderíamos chamar de cimento alisado. O mesmo era feito com o piso. Se o proprietário quisesse, poderia colocar azulejo. Era só colar. Desse jeito, uma casa prevista para ter 48 m² ficava com 53 m², com sala e quartos maiores. Morei alguns anos em uma vila e lá fiz assistência técnica para mim e para muita gente. Depois foi morar por casualidade, e moro até hoje, em um condomínio de casas do BNH. É curioso. Acho que fui destinado a trabalhar com habitação popular.

 

Foi na política que a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social virou lei. Como foi esse processo?
A história da assistência técnica começa em 1975, com uma comissão no CREA. O geólogo Flávio Coulon era presidente e nos incentivou. Também fui Tesoureiro Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) por nove anos, bem no começo, e nem sempre tinha tempo de explicar as finanças durante as reuniões do partido, então o Lula me levava para a casa dele para seguirmos a pauta. Toda vez que eu ia lá, a Marisa, esposa dele, ia no quartinho dos filhos, deixava uma cama para mim e juntava as outras duas para os três filhos dormirem. Propus fazer um segundo piso com cobertura de telha portuguesa na casa. Bem simples, mas ficou uma joia. Foi assistência técnica para o Lula, no início da década de 80.

 

O envolvimento com essas coisas me levou para o Sindicato, depois para a política. Fui vereador de Porto Alegre três vezes – um dos três mais votados, modéstia à parte – e deputado federal. Como fui para a Câmara Federal, resolvi fazer o Projeto de Lei. Não concorri mais. Entrou Zezéu Ribeiro, deputado federal pela Bahia, que deu continuidade. De 2001, quando entrei com o projeto, até 2008, quando foi aprovado, o projeto mudou bastante. Diminuíram sua potencialidade de ser autoaplicável. Tem coisas para regulamentar que nunca foram regulamentadas. A Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e outras entidades já fizeram inúmeras reuniões e seminários sobre o assunto, mas o que falta mesmo é regulamentar a legislação.

 

O arquiteto e urbanista Clóvis Ilgenfritz em entrevista à jornalista Gabriela Belnhak

 

No momento, como você avalia a aplicabilidade da lei?
No dia 24 de dezembro de 2008 eu recebi um telefonema do Gabinete do Presidente, na época o Lula, dizendo: “Diga para o Clóvis que o presente de Natal dos arquitetos e urbanistas eu já dei”. Estava aprovada a Lei 11.888, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. Com a lei, foi criado o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). A assessoria técnica também garantia um subsídio de 18 a 22 mil reais por família atendida.

 

Outro dado urbanisticamente importante é que as famílias poderiam permanecer no lugar onde estavam. Não precisariam ir morar no fim do mundo. Em geral, os terrenos têm condições de serem utilizados, reorganizados, melhorados e o que existe ali, um núcleo de sobrevida familiar, pode ser transformado em uma casinha. Era o que a gente fazia. E fez muitas vezes gratuitamente.

 

O que nós temos vivido nos últimos dois anos é um horror, porque os novos programas são um Minha Casa Minha Vida piorado, que não garantem a presença do arquiteto. A gente tem que mostrar que é importante. É o que o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) tem feito, destinando 2% da receita anual para aplicação em assistência técnica gratuita, mas temos que transformar esse processo em política de Estado. Existem algumas experiências com políticas de Governo. A diferença é que o Governo sai, o Estado permanece.

 

O edital do CAU/RS teve dois projetos classificados propostos por entidades: o IAB RS, com uma vila em São Leopoldo, e o SAERGS, com um projeto de recuperação de um prédio para habitação popular no centro de Porto Alegre. O CAU entra com o dinheiro e as entidades fazem a ponte com os interessados, já que o CAU não pode, por ser uma autarquia pública.

 

O que ainda falta?
Falta que a gente mostre para os prefeitos que dá certo. Falta pressionar o Governo Federal, para que abra uma linha de crédito ou de subsídios. Falta vontade política. Milhões de pessoas moram em vilas paupérrimas e precisam de assistência. Elas podem receber uma casa nova ou reformar a que já existe. E eu tenho por experiência que é melhor deixá-las onde estão.

 

Por Gabriela Belnhak Moraes, jornalista do CAU/RS

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