Entrevista

Memorial de Brumadinho impede que a tragédia caia no esquecimento, diz Gustavo Penna

Gustavo Penna é arquiteto e urbanista e diretor da GPA&A. Foto: Daniel Mansur

Há seis anos, o rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), despejou 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, destruindo instalações da mineradora Vale, moradias e comércios. O desastre matou 272 pessoas, contaminou mais de 300 quilômetros do Rio Paraopeba e afetou 26 municípios. Bombeiros ainda buscam três vítimas desaparecidas.

Para que a tragédia não caia no esquecimento, a Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem (Avabrum) inaugurou, no Córrego do Feijão, o primeiro memorial brasileiro dedicado a uma violação de direitos humanos causada por uma empresa.

O projeto escolhido para abrigar essa memória foi o do escritório Gustavo Penna Arquiteto & Associados (GPA&A), selecionado por meio de um concurso. O desafio era moldar um espaço sólido, capaz de preservar a brutalidade da tragédia sem deixar de ser um ambiente adequado ao luto privado e coletivo.

Em entrevista ao Perspectiva CAU, o arquiteto e urbanista Gustavo Penna, diretor da GPA&A e responsável pelo projeto, abordou os desafios de criar um espaço que honra as vidas perdidas, respeita o luto das famílias e convida à reflexão sobre os impactos da mineração.

Confira imagens do Museu Brumadinho no site do escritório GPA&A e trechos da conversa a seguir.

 

Perspectiva CAU: O que inspirou a escolha do local para o memorial e qual o principal conceito arquitetônico por trás do projeto? Como ele busca traduzir a memória da tragédia?

Gustavo Penna: A ideia foi criar um ambiente diretamente ligado à tragédia do rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Se trata de um Memorial que se identifica com o lugar e com o que aconteceu ali.

O conceito central do memorial é carregar consigo simbolismos e valores despertados pela tragédia: dor, revolta e indignação. A primeira inspiração foi a fenda que surgiu na parede gramada da barragem no momento do rompimento. Não é um desenho nosso. Existiu por frações de segundo, mas foi ela que prenunciou o desastre imenso que viria logo a seguir. A ideia foi congelá-la no tempo, torná-la permanente, para que nunca se extinguisse.

A fenda aponta para o local exato do rompimento. O memorial foi projetado para que o visitante caminhe em direção à barragem rompida, reforçando a ideia do rompimento.

 

Perspectiva CAU: De que maneira o projeto dialoga com o entorno, criando uma experiência única para quem visita, sem perder a conexão com o espaço urbano?

Gustavo Penna: O projeto faz um contraponto ao alto do morro, estabelecendo um diálogo com a paisagem de Minas Gerais. As formas do memorial remetem às montanhas mineiras, que não são curvas suaves, mas sim marcadas por dobras – como as esculturas de Amílcar de Castro, feitas de cortes e dobras.

 

Perspectiva CAU: Quais soluções inovadoras foram aplicadas para garantir a sustentabilidade do projeto, considerando a utilização de materiais e recursos locais?

Gustavo Penna: Embora o memorial pareça simples à primeira vista – feito com um único material – ele exigiu soluções extremamente sofisticadas. Todo o concreto foi pigmentado com o material proveniente do rejeito retirado da barragem. O projeto inclui um sistema de iluminação especial, irrigação, tratamento de água, energia fotovoltaica e climatização. Tudo projetado com alto grau de complexidade.

A própria forma irregular da implantação da obra trouxe desafios. Não era uma construção convencional, com medições simples. A estrutura variava em todas as direções, tanto na planta quanto na elevação, exigindo cortes complexos. A paginação das formas, do teto às paredes, precisou ser meticulosamente planejada.

 

Perspectiva CAU: Que desafios o projeto enfrentou em termos de espaço ou contexto e como essas questões foram transformadas em oportunidades criativas?

Gustavo Penna: Primeiramente um dos grandes desafios foi capturar o sentimento dos familiares por meio de uma escuta profunda para conseguir interpretar e materializar de alguma forma a dor, a indignação e a esperança de ressignificação de tantas perdas. Os desafios técnicos também foram muitos. O projeto teve que ser aprovado por diversos órgãos, incluindo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devido à presença de sítios indígenas e históricos da região. Também tivemos que lidar com questões ambientais junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e com a preservação da Mata Atlântica. Foi um projeto de altíssima complexidade, envolvendo múltiplas especialidades.

 

Perspectiva CAU: Por que o memorial é essencial para a preservação da memória e qual seu impacto para a sociedade?

Gustavo Penna:  Existe uma segunda morte: o esquecimento. O memorial evita o esquecimento. E algo tão impactante como o rompimento da barragem não pode ser esquecido, porque se for, ele se repete.

Temos a obrigação, como seres humanos, de nos solidarizarmos com as vítimas e criar algo que as mantenha vivas na memória coletiva. A dor e a revolta são sentimentos abstratos, mas o memorial lhes dá forma e um espaço concreto para existir. Ele é a casa dessa revolta, o lugar onde esse sentimento reside para impedir que a tragédia caia no esquecimento.

Há ainda a crueldade do fato de funcionários da própria empresa Vale terem sido mortos por negligência da empresa. Isso gerou um impacto imenso, não só para as vítimas diretas, que tiveram suas vidas destruídas, mas também para a comunidade do Córrego do Feijão, para a cidade de Brumadinho e para todo o estado de Minas Gerais.

 

Perspectiva CAU: Como o memorial traduz, por meio da arquitetura, os sentimentos e a memória da tragédia?

Gustavo Penna: O prédio é monocromático, inteiramente na cor da lama misturada com ferro, tom do mesmo material que tingiu tudo após o desastre.

Na entrada, o visitante é recebido por um edifício em forma quebrada e fragmentada, remetendo ao impacto devastador da massa de lama e ferro contra as construções. O impacto foi de uma força inimaginável.

O prédio tem perfurações no teto, permitindo que a luz do sol entre apenas por frestas, como se fossem rachaduras abertas pela tragédia. Ali, nesse espaço de entrada, há a drusa, cristais que brotam da terra – uma referência às minas. Da escuridão surge a luz, simbolizada pelo espelho d’água.

Depois, o visitante percorre duas salas: Memória e Testemunho, que narram a história da tragédia. Acima dessas salas, dentro da fenda, desponta uma cabeça que chora – um grande bloco quadrado de 80 toneladas, com 11 metros de altura por 11 de largura. Esse quadrado representa o desequilíbrio.

A forma quadrada simboliza a invenção humana. A verdadeira criação do homem não foi a roda – esta já existia na natureza, em frutas como jabuticabas e laranjas. O que o ser humano realmente criou foi a interseção entre o vertical e o horizontal, formando um espaço, um lugar. Esse é o equilíbrio arquitetônico, a síntese das forças. No entanto, no memorial, essa forma está inclinada, fora de prumo, porque ali a técnica falhou.

A cabeça chora. Suas faces são estampadas com a topografia do Córrego do Feijão, e dela escorrem lágrimas que se acumulam até formarem uma cascata que deságua no lago.

 

Perspectiva CAU: Qual foi o papel do paisagismo no projeto e como ele contribui para a paisagem do memorial?

Gustavo Penna: O paisagismo também foi pensado para integrar-se ao conceito do memorial. Os bancos espalhados pelo parque foram feitos de madeira reaproveitada de árvores arrancadas pela tragédia. Essas árvores, recolhidas em um “cemitério das árvores”, foram selecionadas, lixadas e tratadas para resistirem ao tempo, tornando-se parte do espaço de memória.

No parque, que tem 80.000 m², plantamos 272 ipês, representando as vítimas da tragédia. O ipê é uma árvore símbolo do Brasil e carrega um significado especial: no verão, enche-se de folhas para dar sombra; no inverno, perde as folhas para deixar o sol passar; e, na seca extrema, floresce em cores vibrantes, como quem diz: ‘a vida continua’. Mesmo na adversidade, ele floresce, transmitindo uma mensagem de resistência.

 

Perspectiva CAU: O memorial foi concebido para ir além da edificação e se tornar um território de memória. Como essa ideia se reflete no projeto?

Gustavo Penna: Além de um espaço de memória, a edificação também é um espaço de educação, para que novas gerações compreendam a gravidade do que aconteceu e o quanto uma tragédia como essa dói. É um exemplo arquitetônico que materializa essa dor e a transforma em aprendizado.

Outro ponto essencial é que o memorial não é delicado, nem frágil. Ele é áspero, robusto. As paredes são grossas, os vãos são amplos, os gestos são fragmentados, mas imponentes.

Não é um memorial pequeno, que cabe em uma sala. Ele é um território memorial. Ele não é apenas um edifício; é um conjunto de gestos que começam no edifício de chegada e terminam no lago.

 

Como visitar o Memorial Brumadinho?

Localizado na Rua Hum, nº 100, Bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, o memorial é aberto ao público de quarta à sexta-feira, das 9h30 às 16h30. Sábado, domingo e feriado, das 9h30 às 17h30. Na segunda e terça-feira, ele é fechado para visitação. A visitação é gratuita. Mais informações no Instagram: @memorial.brumadinho.

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