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O cotidiano da cidade e verticalização – Artigo de Nadia Somekh

Artigo publicado na Revista Móbile 25 / CAU SP, edição de Maio de 2022

Está em curso em São Paulo uma consulta pública aberta pela Prefeitura objetivando a Revisão Intermediária do Plano Diretor de 2014. A mídia tem dedicado pouco espaço ao assunto, e mesmo a sociedade não está mobilizada o suficiente.

 

Não deveria ser assim, pois a revisão do Plano Diretor talvez seja a última oportunidade para discutirmos mitos e verdades sobre a regulação urbana da cidade que impactam cruelmente o cotidiano de sua população: a convivência com uma cidade formal, cada vez mais verticalizada, e um mar de moradias precárias nas periferias urbanas.

 

Um dos mitos sustenta a defesa do frenético ritmo de verticalização dos bairros centrais da cidade com o argumento de que a transformação irá adensar a ocupação da região. A verticalização é um grande passo na solução do aproveitamento do espaço, no entanto, o modo como ela se deu em São Paulo contribuiu para que a cidade nunca concretizasse um projeto de urbanidade consistente e efetivo. O que está ocorrendo é a continuidade da elitização da produção imobiliária, com edifícios residenciais de alto padrão, apartamentos para poucos moradores, voltados para um novo rentismo “airbnb”, o que não significa, portanto, densidade alta.

 

A produção imobiliária em si não é problemática, desde que seja inclusiva, mas isso não vem acontecendo e não é de hoje.

 

O processo de verticalização da capital paulista, historicamente, excluiu a população mais pobre dos apartamentos. Até hoje, a regulação urbanística desconsidera o lugar da população de baixa renda na cidade. Esse é o nosso cotidiano.

 

Localizamos em 1957, com a lei municipal Nº 5.261, o início do processo de elitização da verticalização de São Paulo. Mais precisamente, com a cota mínima de 35 metros quadrados de terreno e a limitação de coeficientes a 4 e 6. Até esse ano, a legislação limitou-se apenas ao estabelecimento de alturas máximas das construções. A partir de então, a produção de pequenos apartamentos, que abrigava populações mais pobres em áreas centrais, acabaria também por limitar o tipo de população que poderia morar em apartamentos. Grandes apartamentos foram produzidos a partir dessas limitações a alta densidade.

 

Havia uma dupla justificativa para a definição das densidades: em primeiro lugar a tentativa de solucionar o congestionamento advindo do crescimento vertical e, fundamentalmente, “proteger a família” que, segundo o engenheiro e arquiteto Anhaia Mello (1891-1974), um de seus formuladores, vivia em edifícios “com centenas de apartamentos de quarto, banheiro e a tal de kitchenette, que se resume num cantinho com um bico de gás para empestear o ambiente do quarto e banheiro”. Como consequência, a verticalização se elitizou produzindo grandes apartamentos e excluindo famílias que moravam em áreas centrais e em pequenos apartamentos. As quitinetes deixaram de atender à população mais pobre, que precisou resolver sua questão de moradia espraiando-se em cidades vizinhas, principalmente em favelas, cortiços e loteamentos periféricos e irregulares, que cobrem 65% do território paulistano.

 

O processo foi se agravando com o tempo. De 1967 a 1972, com a “verticalização do milagre”, o índice de crescimento vertical foi bastante significativo, iniciando-se com as ações do Banco Nacional da Habitação (BNH) na promoção do desenvolvimento imobiliário. De 1972 a 1988: a “verticalização pós-zoneamento”, que se instala depois de promulga- da a legislação de zoneamento, passa pela desaceleração econômica da década perdida, pelo fim do BNH em 1986, até a Constituição de 1988 e do Plano Diretor de 1988.

 

A legislação, até hoje, atende somente às necessidades da produção de mercadorias formais, que conformam uma São Paulo vertical, mas não densa.

 

As áreas de maior densidade estão junto às comunidades e nas periferias da cidade. O Plano Diretor deve, obrigatoriamente, olhar para esta população expulsa das áreas centrais com infraestrutura consolidada.

 

A cidade compacta se tornou nos últimos anos a tábua de salvação para o planejamento nos grandes aglomerados urbanos.

 

Aliando altas densidades populacionais com uso misto, estruturadas ao longo de eixos de transporte coletivos, este “modelo de cidade” vem se tornando um paradigma para “boas práticas” do planejamento e do desenho urbano em diversas escalas em diferentes localidades e realidades, desde projetos urbanos sustentáveis nos Estados Unidos, alternativas habitacionais em centros históricos de cidades europeias a planos diretores municipais de grandes cidades de países em desenvolvimento.

 

Neste enredo, a condição sine qua non para a cidade compacta é a alta densidade. Mas o que isso significa? Densidade é a qualidade do que é denso, compacto. No contexto do planejamento e do urbanismo, engloba um vasto léxico conceitual: densidade urbana, demográfica, populacional, habitacional ou construtiva. Todos estes aspectos devem ser levados em conta por um Plano Diretor ou lei de zoneamento que tenha como diretriz incluir “na cidade” os cidadãos paulistanos que moram mal. Aí, sim, poderemos tirar o atraso e tornar o nosso cotidiano uma cidade na qual o território seja instrumento de agregação de cidadãos, e não de segregação.

 

No entanto, na linha do tempo da verticalização em São Paulo, a questão da densidade não aparece, apesar de se fazer presente na maioria das grandes questões urbanas nas cidades capitalistas ocidentais.

 

A última atualização da regulação urbana da cidade ensaiou algo nesse sentido, mas a despeito das boas intenções iniciais, acabou sendo apropriada pela iniciativa privada, particularmente por fundos imobiliários e por um novo rentismo puxado pelos investidores que estão saindo da Bolsa.

 

Veja-se, por exemplo, a recente produção do mercado imobiliário em São Paulo, nas Zonas de Transformação Urbana, revela intensa produção em dois setores distintos da cidade, o vetor sudoeste, sobretudo nas administrações regionais Pinheiros e Vila Mariana, e no setor leste onde destacam-se as administrações regionais Penha e Itaquera. Pequenos apartamentos voltam a ser produzidos, não para atender quem precisa, mas para constituir uma nova “classe rentista”.

 

Em paralelo, a inovadora “cota de solidariedade”, por enquanto, significou muito pouco na sua baixa escala de implementação. Precisamos de políticas mais amplas de recuperação do enorme passivo existente.

 

Em resumo, o processo de verticalização de São Paulo excluiu dos mais pobres a possibilidade de morar em apartamentos, o que ocasionou a produção de loteamentos periféricos irregulares e moradias precárias. O Plano Diretor não pode olhar apenas para a “cidade formal”, tem que induzir o resgate deste passivo imenso.

 

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil propõe o programa “Mais Arquitetos” para enfrentar o problema das 25 milhões de moradias precárias no Brasil, sendo quase dois milhões na cidade de São Paulo. Uma das alternativas é a transformação da Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS) em política de Estado, com transferências de recursos da União para os municípios. Desta forma, a implementação da lei ganhará escala no país, e arquitetos, engenheiros e outros profissionais, remunerados pelas prefeituras, poderão empregar seus conhecimentos técnicos para reformas ou melhorias das casas precárias. Para nós, do CAU, este deve ser o foco principal da revisão do Plano Diretor, que precisa ser objeto de debate democrático e, especialmente, didático, para alcançar aqueles que são leigos na matéria, os potenciais novos prejudicados pela ideologia da atual regulação urbana da cidade.

 

Vamos encarar isso de frente e transformar nosso cotidiano?

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