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O descaso com a informalidade

Desde épocas remotas a informalidade está presente nas cidades brasileiras. Gravuras do Brasil Colônia e do Império mostram com extrema fidelidade as ruas do Rio repletas de vendedores ambulantes e serviçais compartilhando o espaço público com funcionários do governo e a aristocracia. Foi com o advento da República que começaram a acontecer, de fato, as primeiras grandes transformações urbanas na cidade.

 

O início desse processo é atribuído à obstinação do Prefeito Pereira Passos (1903-1906) em realizar obras que pudessem dar à cidade uma imagem à altura do status de capital da república. O desejo de ver aqui reproduzido o bem sucedido modelo das reformas urbanas de Paris, o levou a abrir ruas, alargar outras e produzir uma espacialidade diferenciada daquela que era conhecida da nossa sociedade.

 

Os novos espaços urbanos e os conjuntos arquitetônicos construídos naquele início de século logo se tornariam objeto de admiração, especialmente das classes empresariais entusiasmadas com a nova imagem de progresso. No entanto, a abrangência das reformas realizadas não beneficiou especificamente as camadas mais pobres da população, que assistiram perplexas a demolição dos cortiços onde viviam em condições precárias de salubridade.

 

As restrições impostas à construção de novas residências na área central contribuíram para consolidar a moradia dos trabalhadores nos subúrbios distantes e nos morros vizinhos ao centro da cidade. Essa tendência de ocupação informal, que persiste até hoje, só será revertida quando se promover uma política habitacional que incorpore efetivamente os princípios básicos da urbanidade e da própria dignidade humana.

 

Os conjuntos habitacionais que estamos acostumados a ver não passam de paliativos de má qualidade, destinados a elevar as estatísticas eleitoreiras e favorecer às empreiteiras envolvidas na sua construção. Na verdade, são construções que não resistem a uma avaliação crítica mais séria e descompromissada ideologicamente.

 

Nas comunidades espalhadas pelo Rio, a ausência do Estado abriu espaço para políticos inescrupulosos e lideranças comunitárias comprometidas com o mercado imobiliário informal controlado por milícias e facções do tráfico. Bancados pela venda de drogas, de botijões de gás, de internet pirata, de transporte em vans e motos, e pela cobrança compulsória de taxas de segurança dos moradores e comerciantes, esses grupos criminosos fazem, ao arrepio da lei, o que bem entendem nessas localidades.

 

Entra governo, sai governo, a ladainha é sempre a mesma. Não há meios e recursos para controlar o crescimento desordenado da cidade. Enquanto a cidade informal cresce vertiginosamente sem nenhum controle, o governo municipal dedica a sua atenção a aprovação dos projetos de reformulação da lei de uso do solo e do novo regulamento de edificações que tramitam na Câmara dos Vereadores. Aprimora-se o formal como se não existisse a presença do informal.

 

Mais uma vez, insiste-se no erro de não privilegiar a questão da ocupação informal do espaço urbano e à sua interferência evidente na estruturação da cidade. Basta observar nas favelas cariocas a expansão do próspero mercado imobiliário paralelo. Salta aos olhos os prédios com diversos pavimentos sendo construídos em favelas sem que os responsáveis por garantir a ordem urbana tomem alguma providência efetiva para impedir tal desatino. É como se a informalidade não existisse aos olhos dos nossos governantes.

 

Na verdade, há favelas e favelas na cidade do Rio de Janeiro. Algumas mais bem localizadas e outras situadas no fim do mundo. Enquanto essas últimas carecem de tudo, as primeiras mesclam espaços de extrema pobreza com áreas dotadas de moradias e comércio de qualidade surpreendente. A Rocinha é um bom exemplo. Nota-se uma mudança significativa no perfil dos moradores dessas comunidades. Se urbanizadas, elas poderão se incorporar naturalmente ao tecido urbano da cidade formalmente construída.

 

Portanto, se essas questões não forem estudadas e tratadas com a atenção que merece, em breve veremos a lógica da informalidade se espalhar irreversivelmente por todos os espaços da cidade. É chegada a hora de o poder público olhar a população que vive e sobrevive na informalidade e trata-la com a devida consideração. Não dá para continuar negando a essa gente parte dos recursos que são disponibilizados para a cidade regulamentada.

 

O momento parece oportuno para estimular o poder público e as representações não governamentais a debaterem democraticamente as suas ideias e projetos envolvendo a questão da informalidade em nossas cidades. Se não agirmos imediatamente, quem sabe, amanhã talvez seja tarde demais.

 

Fonte: O Globo

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