Lei de Licitações

“O que esperar de um projeto?”, artigo da arquiteta Yara Santucci

ARTIGO YARA
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

O que a cultura da colcha de retalhos e puxadinhos tem a ver com a queda da ciclovia Tim Maia e o Regime Diferenciado de Contratação (RDC)?

 

A conivência com o imediatismo. Do imediatismo inocente da família que vai crescer, ao imediatismo nada inocente dos interesses escusos entre incorporadoras e autoridades em obras públicas, há sempre uma concordância entre as partes em prol da aceleração.

 

Talvez seja uma resposta amarga, mas genuína. Devemos olhar de frente para elas se quisermos a Ordem e Progresso para o nosso Brasil.

 

Já que nós, sociedade brasileira, temos o hábito incorporado de “resolver” por conta própria e “rapidinho” nossas necessidades nada planejadas, mesmo que isso signifique correr vários riscos, torna-se sempre mais fácil para as autoridades tomarem medidas igualmente inconsequentes e burlarem procedimentos já normatizados com emendas tendenciosas, o que comparativamente é severamente mais grave por tratar-se de patrimônio e risco públicos. Onde o risco deveria ser mínimo ou nulo, ele se amplia exponencialmente. A saber: a lei 12.462 de 4 de agosto de 2011 institui o Regime Diferenciado de Contratação (o nome não diz nada, o que já diz tudo, mas vamos em frente) que abrevia o processo licitatório por simplesmente dispensar o projeto executivo (em que os arquitetos e engenheiros detalham em maior escala cada parte do que será construído, especificam todos os materiais, aplicam normas ponto-a-ponto, fazem a compatibilização de todos os projetos técnicos complementares entre si e com os de estrutura e arquitetura evitando prejuízos em obra, dentre outras tantas responsabilidades técnicas intransferíveis a que respondem), para apenas aprovar um orçamento “detalhado” que tem num mero “projeto básico” sua base e seguir para a execução da obra. Nada mais precário. Projeto básico nada mais é do que um estudo, uma etapa inicial, um rascunho passado a limpo, aquele que o profissional apresenta ao cliente para protocolar a aprovação da ideia conceitual e comprovar a capacitação da mesma para atender ao plano de necessidades solicitado, para então seguir para o projeto em si, o executivo. Seguindo o raciocínio do “rapidinho”, faria todo o sentido tocar toda uma obra com inúmeras interfaces e logísticas munido de um simples rascunho passado a limpo. Não é mesmo?

 

Então vem a manchete nacional: “Duas pessoas morrem e uma está desaparecida após desabamento de ciclovia no Rio”. A sociedade e autoridades lamentam. Mas se fez tarde.

 

É sempre tempo de recomeçar. Então vamos analisar do começo, propriamente dito:

 

O termo “projeto” comumente usado pelas pessoas que querem fazer qualquer tipo de obra aparece em frases cotidianas como “vou pedir um projeto para ampliar o salão de festas do prédio”, “a portaria nova ainda está sem projeto”, “quero um projeto para resolver os problemas do meu restaurante”, “vamos fazer um projeto para dividir esse setor da empresa em quatro”, “estou pensando num projeto de reforma para meu apartamento”.

 

O problema não está na palavra projeto, como sua origem comprova:

 

A palavra projeto vem da palavra latina projectum do verbo em latim proicere, “antes de uma ação”, que por sua vez vem de pró-, que denota precedência, algo que vem antes de qualquer outra coisa no tempo (em paralelo com o grego πρό) e iacere, “fazer”. Portanto, a palavra “projeto”, na verdade, significava originalmente “antes de uma ação”.

 

Ótimo! Constata-se que para qualquer intenção o ponto de partida é um projeto! Até aqui todos estamos de acordo.

 

O problema está na prática: do grego praktikos, “capaz de executar uma ação”.

 

Já temos como fechar esse teorema – fica didaticamente confirmado que: para uma ação ser executada é preciso antes de mais nada um projeto, e também….capacitação!

 

Como ter capacitação se não há detalhamento? Responda após refletir. Tente novamente.

 

Não há simplesmente como garantir a boa execução de uma obra sem que seu projeto seja completo e muito bem detalhado, especificado, gerenciado, compatibilizado, orçado.

 

Há uma frase já célebre que diz que enquanto na Europa um projeto leva anos para ser executado em meses, no Brasil ocorre o contrário, o projeto leva meses para ser executado em anos. Em qual dos dois sujeitos está o fator inteligência?

 

Ora, conclui-se daí que sem projeto e sem capacitação viabilizada não teremos a ação. Vira inação, portanto, no sentido de engano, de inverso. E finalmente verificando: se a ação é progressista e ganho, a inação no sentido mencionado é retrocesso e prejuízo.

 

Para quem não sabe, o RDC foi instituído pela tal lei com fins de acelerar obras especificamente da Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas. Entretanto, no ano seguinte foram feitas emendas para passar a abranger também obras do PAC, SUS e de segurança pública, como presídios. Parece mentira, mas é verdade. Patrimônio de infraestrutura pública sendo construído por todo território nacional com baixíssima qualidade, acelerando contratações mi e bilionárias de empreiteiras e lixiviando dinheiro, mas também educação, saúde, segurança e a imagem da sociedade brasileira no cenário mundial.

 

A palavra projeto quando usada genericamente pelas pessoas torna-se um perigo, porque não informa o que, de fato, é um projeto arquitetônico. Urge esclarecer a sociedade brasileira a respeito do verdadeiro sentido incutido nessa palavra, e demonstrar as consequências verdadeiramente progressistas e benéficas ao patrimônio público a partir dela. A prática profissional, tampouco este artigo, não visa esse didatismo, que na verdade cabe às representações da classe, a quem nós profissionais creditamos nossa confiança e esperança.

 

Nós, profissionais capacitados, teremos sempre imensa satisfação em sermos escolhidos por uma sociedade esclarecida e responsável para projetar com propriedade e executar com competência a portaria, o restaurante, a reforma do apartamento, a empresa, o salão de festas ou obras públicas.

 

Yara Santucci é Arquiteta Urbanista  e Paisagista em São Carlos SP pela FAU Mackenzie SP. Especialista e Consultora ANAB – IBN em Arquitetura Sustentável e Bioecológica. Diretora da CEDRO Execuções e Sustentabilidade, se dedica a projetos arquitetônicos sustentáveis e a análises de ecoeficiência e conforto.

 

 

Fonte: Archdaily

 

Publicado em 07/07/2016

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