A CARTA DOS CEM DIAS – POR UM PACTO PELO DIREITO À CIDADE, divulgada pelo CAU/BR, nesse mês de abril, de 2017, causou perplexidade e deixou algumas questões no ar. Penso que o CAU/BR auxiliaria a compreensão dos arquitetos e urbanistas se esclarecesse, com maior detalhe, alguns aspectos da proposta.
Em primeiro lugar, é importante compreender que a Nova Agenda Urbana apresenta um ideário comum, uma série de compromissos e uma proposta de plano de ação, visando o desenvolvimento sustentável. Contudo, como veem denunciando movimentos sociais e intelectuais, a NAU não incorpora a defesa do Direito à Cidade e não reconhece que a construção de uma cidade menos desigual depende da prevalência dos direitos humanos sobre os interesses do capital. Não seria importante uma manifestação do CAU sobre esse ponto?
Outros aspectos do documento do CAU/BR poderiam ser esclarecidos, a exemplo da menção a uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, visto que não existe uma PNDU em vigor no Brasil atualmente, nem por parte da União, nem por iniciativa de municípios, que deveriam ser os maiores interessados nesse assunto. No passado, logo depois de sua criação, o Ministério das Cidades tratou da elaboração de uma PNDU, que deveria considerar uma tipologia dos municípios, baseada na sua função regional e no desenvolvimento socioeconômico mas, essa proposta não avançou. O CAU estaria se propondo a retomar os debates visando a criação de uma PNDU?
O documento também aborda outros temas, como as regiões metropolitanas. É importante ressaltar que este é uma questão em debate no Brasil, que envolve a disputa entre as Funções Públicas de Interesse Comum e a autonomia dos municípios, garantida constitucionalmente, entre outras pontos importantes. Vale observar que ainda não existe um quadro destacado de “gestores metropolitanos” e que, inclusive, a forma de governança definida no Estatuto da Metrópole, com participação direta de representantes da sociedade, vem sendo questionada. Falar em Direito a Metrópole também merece aprofundamento visto que o Direito à Cidade é um conceito geral que trata, em última análise, de garantir cidadania. Como se distinguiria o Direito a Metrópole? Diante desse quadro, quais seriam as principais propostas para a gestão metropolitana?
O CAU também menciona o desmantelamento do planejamento ocorrido no Brasil nas últimas décadas, nos três entes federados, e faz uma defesa do planejamento urbano, fato que encontra grande apoio nos meios profissionais. Não fica claro, no entanto, se o Conselho considerou o histórico recente do tema no Brasil analisando, por exemplo: o planejamento urbano tecnocrático dos anos 1970; a pequena aplicação do Estatuto da Cidade; as infrutíferas experiências de Plano Diretor Participativo. É importante destacar que todas essas iniciativas de planejamento urbano, distintas entre si, pelas suas características e períodos políticos, contribuíram muito pouco para a melhoria da qualidade de vida e para a redução das desigualdades nas cidades. Estaria o CAU ciente das limitações do planejamento urbano? O que poderia ser feito para mudar esse percurso histórico?
Mas parece que a proposta de Pacto pelo Direito à Cidade é o principal ponto do documento e merece um aprofundamento. O texto menciona um “pacto pela qualidade” e pelo “usufruto digno e democrático da cidade”. Ocorre que a maioria das cidades brasileiras apresenta um quadro de elevada desigualdade, onde prevalece a concentração de investimentos e infraestrutura em pequenas parcelas do território, com maior qualidade urbanística. Em contrapartida, a maior parte da população, de menor renda, enfrenta insegurança e má qualidade de transporte, equipamentos, infraestrutura e serviços urbanos. O Pacto seria uma proposta para garantir acesso de toda a população as áreas de maior qualidade urbanística? Ou seria para reduzir as desigualdades urbanas? Haveriam outras propostas?
Outro aspecto a esclarecer se refere aos sujeitos envolvidos na pactuação. A principio, em nosso entendimento, uma proposta de Pacto envolve diferentes atores e isso não fica claro. A proposta do Conselho parece não reconhecer o histórico das lutas mais recentes pela gestão democrática das cidades no Brasil, seus avanços (pequenos), dificuldades (muitas) e retrocessos (diversos), envolvendo representações de diferentes seguimentos da sociedade e das três esferas de governo – União, estados e municípios. Para o Conselho dos arquitetos, o Pacto proposto deve se dar entre quem? Além disso, quais os fóruns que deveriam ser utilizados para a construção dessa pactuação? E quais seriam os objetivos iniciais dessa pactuação?
Ainda mais preocupante é a ausência de uma análise de conjuntura. Ocorre que a classe política está fortemente atingida pelas denúncias de corrupção e pela crise do sistema político e fiscal. Enquanto isso, o Governo Federal, que muitos consideram ilegítimo, trabalha para aprovar projetos de interesse do “mercado”, a exemplo da reforma da Previdência. Na área do desenvolvimento urbano, a União empurra uma legislação de regularização fundiária, por meio de uma Medida Provisória, sem realizar nenhuma discussão com instituições que tratam do assunto, e encontra forte oposição de todos os setores progressistas. Num ambiente desses, será que haveria condições políticas de “sensibilizar o Congresso Nacional” para se propor uma pactuação pelo Direito a Cidade?
Nesse contexto, não é uma tarefa simples conseguir que os prefeitos municipais definam metas claras nos seus planos de governos locais (e metropolitanos), visando integrar uma Agenda 2030, com objetivo de garantir o Desenvolvimento Sustentável. A crise fiscal atinge fortemente os municípios que, na sua grande maioria, dependem de transferência de recursos e investimentos federais e estaduais, o que foi fortemente impactado pelas crises econômica, fiscal e política. Como esperar que os gestores municipais possam apontar uma visão de longo prazo favorável considerando cenários econômicos e políticos tão incertos e negativos? Haveriam propostas comuns de curto prazo?
Talvez falte ainda analisar o papel do CAU nesse processo, uma organização profissional, uma instituição do campo da sociedade. Em Quito, enquanto a ONU discutia a Nova Agenda Urbana, movimentos sociais propuseram a criação de uma Agenda dos Habitantes, a ser liderada pelas organizações da sociedade, independentemente dos governos e das propostas de institucionalização das lutas sociais.Estariam os arquitetos e urbanistas dispostos a trabalhar em conjunto com outras organizações da sociedade, particularmente aquelas do campo popular, pela construção de uma Agenda dos Habitantes?
Kelson Vieira Senra é arquiteto e urbanista, ex-presidente da FNA