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Para ser útil a toda a sociedade

Em meio ao turbilhão de más notícias, há exceções. O edifício do Museu do Amanhã, de autoria do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, recebeu prêmio internacional por sua relação com o meio ambiente. O Museu de Arte Moderna do Rio abriga exposição sobre a magistral obra do arquiteto catalão Antoni Gaudí. Obras de Oscar Niemeyer em São Paulo foram tombadas como patrimônio.

 

Gaudí, Niemeyer e Calatrava são excepcionais arquitetos e produziram obras também excepcionais. As obras de Gaudí foram concebidas no início do século passado em estreito diálogo com a modernidade catalã. Grande parte da obra de Niemeyer foi erguida na perspectiva inovadora que o modernismo representava, como compreendeu JK ao contratar os edifícios da Pampulha e de Brasília. Calatrava apoia sua obra na exuberância formal com viés tecnológico, como sua sinalização de futuro.

 

Obras excepcionais servem de referência para a identidade coletiva. Mas as cidades não se fazem apenas com o excepcional. É no conjunto dos espaços vividos que se compõe parte importante de nossa subjetividade. Contudo, há bons e maus espaços. Bons espaços se fazem de variados materiais, formas e procedimentos — mas, indissociavelmente, como dizia Lucio Costa, se fazem quando há uma nobre intenção.

 

Da simples casa ao complexo hospital, do bairro à metrópole, a vida que abrigam merece o melhor ambiente, o mais cuidadoso trabalho, a mais harmoniosa relação entre espírito e matéria que as circunstâncias possam permitir. Nada menos deve nos satisfazer.

 

Seja de Gaudí, Niemeyer, Calatrava ou de outros arquitetos — e mesmo de autoria anônima, nenhuma obra que nos encanta foi produzida sem uma ideia propulsora; é esta ideia que estrutura um projeto, o qual se materializa em construção.

 

Nosso país construiu vertiginosamente nas últimas seis décadas. E ainda construirá nesta geração mais do que em qualquer outra. Quando se constata quão difícil está o nosso cotidiano urbano, pode-se avaliar quanta potencialidade foi desperdiçada ao se fazer nossas cidades à margem do planejamento e sem projeto. Quanto se gastou de modo irresponsável porque se escolheu construir sem atenção às desigualdades intraurbanas; quanto se gastou exageradamente porque se contratou a obra diretamente à empreiteira, sem a mediação do projeto completo elaborado antes da licitação.

 

Infelizmente, todo dia maus exemplos são atestados. Há pouco, o Tribunal de Contas informou que a reforma do Maracanã dobrou de preço por falta de projeto completo. Pelo mesmo motivo, a linha 4 do metrô gastou bilhões além da conta, segundo o tribunal. Perdemos oportunidade de ouro com a joia das obras olímpicas: os bilhões além da conta dariam para transformar em metrô as linhas de trens suburbanos. Isto é, o metrô que reduziu o tormento diário de cem mil passageiros, na Barra, poderia ter também alcançado oito milhões de moradores das zonas Norte, Oeste e da Baixada.

 

A arquitetura serve para fazer melhor a vida das pessoas. Ela valoriza a inovação e a excepcionalidade — mas não se basta nelas. Para ser útil a toda a sociedade, é preciso que o espaço seja pensado permanentemente, seja planejado, e que as obras sejam fruto de projetos bem feitos.

 

Cada prêmio de arquitetura, cada exposição, cada obra tombada como nosso patrimônio devemos recolher como estímulo para a revisão dos procedimentos irresponsáveis com que o território brasileiro está sendo malversado espacialmente. Muitos novos Gaudís, Niemeyers e Calatravas poderão vir a contribuir para um país menos desigual e ainda mais bonito.

 

O turbilhão de más notícias viraria brisa amena.

 

Artigo originalmente publicado no jornal O Globo (25/03/2017)

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9 respostas

  1. Para ser útil a toda a sociedade: Parabéns pelo importante texto! Compartilho da ideia de que nós Arquitetos e Urbanistas perdemos muitas oportunidades valiosas de Planejar as Cidades e as Metrópoles. Temos hoje uma Lei (Estatuto da Metrópole) que depende muito de nós, Arquitetos e Urbanistas, para ser implantada de forma adequada, para que assim possamos Planejar para as pessoas e com as pessoas. A Lei 13.089/15 – Estatuto da Metrópole dá condições legais para isso quando determina: (…) governança interfederativa das regiões metropolitanas observará as seguintes diretrizes específicas: • implantação de processo permanente e compartilhado de planejamento e de tomada de decisão; • gestão compartilhada das funções públicas de interesse comum – FPIC; • participação de representantes da sociedade civil nos processos de planejamento e de tomada de decisão, no acompanhamento da prestação de serviços e na realização de obras, afetas às FPIC. E é junto com a Sociedade Civil ! Nas linhas de metrô daqui de São Paulo é transportado o maior nº de passageiros por km do Mundo para uma Região Metropolitana! 271 hab/km !! Mobilidade/transporte rápido é uma das FPIC mais importantes em uma Região Metropolitana. Quem planeja e decide?

  2. Em poucas linhas Sergio resumiu tudo de importante para a nossa cidade e nosso País. Fazer obra publica tomando como base um projeto básico, dá combustível para indefectível corrupçao.

  3. É sempre bom ver “pessoas” e, mais ainda, arquitetos “comprometidos” com o viver das pessoas que compoem nosso País.
    Ver que ainda existe uma luz no fim do túnel.
    Ver que , embora isolados físicamente, somos irmanados em pensamento sobre o “nosso” futuro, o nosso legado.
    Gerson Christ – ChristArq

  4. Muito bem falado ,que o brasileiro realmente veja a importância da arquitetura na sua vida diária.

  5. Simplesmente Preciso e Direto. Sérgio Magalhães é abençoado por sua mente brilhante, e visão vanguardista. É disso que nosso Brasil precisa!

  6. Destaco no artigo:”Há pouco, o Tribunal de Contas informou que a reforma do Maracanã dobrou de preço por falta de projeto completo.” e …”Muitos novos Gaudís, Niemeyers e Calatravas poderão vir a contribuir para um país menos desigual e ainda mais bonito.”

    parabéns Sérgio! belo artigo!

  7. Sobre a atuação de arquitetos de outros países no Brasil, como ocorreu no museu do amanhã através da condução do mesmo pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Gostaria de saber mais o que ocorre quanto as questões legais, já que o mesmo teria que ser registrado ao CAU, até mesmo para adquirir responsabilidade sobre o projeto, tando durante a execução do mesmo quanto posteriormente caso apresente ou ocorra algum problema.
    Gostaria muito de receber um posicionamento do CAU/BR sobre esta dúvida, pois não consegui encontrar nenhum tipo de informação voltada a este assunto. *inclusive procurei se havia algum registro no CAU/RJ do arquiteto, porém não encontrei nenhuma informação também.

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