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“Quartinho de empregada”: resquícios escravistas na arquitetura brasileira

Foto: José Afonso Silva Junior

 

Hoje é dia 27 de abril, dia que marca a luta das Trabalhadoras Domésticas no Brasil, mulheres que sustentam a base da pirâmide social brasileira e colocam no centro da mesa do debate as questões de classe, gênero e raça do nosso país.

 

Quase dez anos após a PEC das Domésticas – que ampliava os direitos trabalhistas e assegurava a essas trabalhadoras os mesmos direitos de qualquer outra profissão – a categoria ainda apresenta um alto índice de informalidade, intensificado pela crise financeira e sanitária, decorrente da pandemia de covid-19, que evidenciou ainda mais as desigualdades em nossa sociedade.

 

Nesse dia da Trabalhadora Domestica, cabe a nós, profissionais de arquitetura e urbanismo, um olhar sobre o desenho da morada brasileira, e o que dele reforça a nossa herança escravocrata e colonial reproduzindo padrões de desigualdade, subalternidade e precarização. O “quartinho de empregada” representa a senzala moderna, analogia feita pela a historiadora, rapper e ex-trabalhadora doméstica Preta Rara [1], símbolo dessa herança. 

 

No artigo “O ‘quartinho de empregada’ e seu lugar na morada brasileira”, os pesquisadores Maíra Boratto Xavier Viana e Ricardo Trevisan[1]  “nesse panorama, estariam os profissionais de arquitetura no papel de meros reprodutores – não questionadores – dessas relações sociais, conectadas historicamente por hábitos, costumes e relações serviçais? Será mesmo necessário pensar em um local para ser a dependência de serviço nas residências contemporâneas?

 

Preta Rara, autora do livro “Eu, empregada doméstica” conta, no episódio “Casa-grande & o quarto de empregada” do podcast 451MHz, que a situação atual do trabalho doméstico é consequência de uma abolição não concluída, pois o que eram as escravizadas domésticas do período colonial, não é muito diferente do que são as trabalhadoras domésticas de hoje. E destaca que a vulnerabilidade e desvalorização do trabalho doméstico acontece dessa forma no Brasil porque “essa classe trabalhadora tem cor, tem classe e ela tem gênero. [Dentre as pessoas que trabalham com serviços domésticos,] São 92% de mulheres e 78,8% de mulheres pretas”. Boratto e Trevisan endossam o pensamento de Rara:

 

Numa sociedade escravocrata, na qual era sabido o papel do escravo e de seus afazeres, a senzala era assumidamente um espaço do conjunto doméstico. Com a Abolição (1888), tais funções ficaram veladas, atribuídas a prestadores de serviços menores, cujos direitos trabalhistas foram regulamentados apenas em 2015 com a sanção da “PEC das Domésticas”. (2016)

 

Segundo análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2020 realizada pela ONU Mulheres, atualmente cerca de 6 milhões de mulheres no Brasil são trabalhadoras domésticas e, de acordo com as estatísticas, menos de 28% das trabalhadoras possuem vínculo empregatício e direitos trabalhistas assegurados. Segundo o Instituto Doméstica Legal, a informalidade de trabalhadoras domésticas aumentou para 75,64% em 2021, sendo o maior índice desde 2012.

 

A classe é composta majoritariamente por mulheres negras, moradoras de periferias, que convivem com o preconceito racial e com a baixa renda, trabalhando muitas vezes em condições precárias, abusivas, exaustivas e mal remuneradas. As trabalhadoras domésticas, ainda hoje, recebem, em média, menos que um salário mínimo mensal.

 

O retrato dessa desigualdade ficou ainda mais gritante durante a pandemia de Covid 19, período em que a orientação era para que as famílias ficassem em casa para não se expor aos riscos de contágio. No entanto, a informalidade dessa atividade profissional lançou essas trabalhadoras numa cruzada diária a seus postos de trabalho para poderem garantir sua subsistência. Dados apontam que foram elas, as trabalhadoras domésticas, motoristas e pedreiros os maiores caso de óbito em muitas cidades brasileiras. É importante destacar o caso da empregada doméstica Cleonice Gonçalves, que morava com seus empregadores e foi o primeiro caso de morte registrado na Zona Sul do Rio de Janeiro.

 

O documentário brasileiro “Aqui não entra luz”, da cineasta Karoline Maia, apresenta a relação entre o quarto de empregada e a senzala. Em sua pesquisa, ela mostra como é a realidade do cômodo, ainda presente em muitos projetos de casas e apartamentos. Karoline destaca que há um esforço arquitetônico de marcar espacialmente que o quartinho de empregada é dissociado do ambiente familiar e pertencente ao ambiente de serviço, situado nos fundos (entrada de serviço), próximo à lavanderia ou à cozinha. Sem conforto ou bem-estar, é pouco iluminado e sem ventilação.  A “entrada de serviço” é outro elemento remanescente da casa grande colonial, onde dava acesso direto à cozinha e era colocada ao lado da senzala doméstica, impedindo que as escravizadas circulassem pelo ambiente da casa.

 

O racismo estrutural reproduz a subalternização das mulheres negras, fazendo com que esse ciclo não se encerre e seja passado de geração em geração. Essa roda pode ser quebrada a partir de uma arquitetura que se proponha a questionar os modelos hegemônicos e coloniais perpetuados em nossos projetos, adotando uma postura crítica, antirracista e interseccional baseada na qualidade de vida, inclusão e no bem-estar. A garantia de espaços democráticos está diretamente ligada à garantia da representatividade, portanto, para se pensar em uma arquitetura e urbanismo acessível e inclusiva é necessário que essas discussões tenham permeabilidade e presença nos lugares de poder e nos debates urbanos e políticos.

 

Para instigar a reflexão, compartilhar dúvidas e aprofundar o tema, o CAU/BA promove na data de hoje, dia 27/4, às 17h, um bate-papo diálogo interdisciplinar sobre “O olhar da arquitetura para o quarto de empregada”. Participarão do evento Karoline Maia, cineasta e idealizadora do longa-metragem “Aqui Não Entra Luz” e José Afonso Junior, professor da UFPE e fotógrafo idealizador do projeto “Suíte Master e Quarto de Empregada”. A live será mediada pela vice-presidente do CAU/BA, Arq. Urb. Denise Marques e pela conselheira Arq. Urb. Damile Menezes. O debate será transmitido ao vivo no Instagram oficial do CAU/BA (@caubahiaoficial).

 

Indicações e referências sobre a temática:

Podcast 451 MHz, episódio 24 – Casa-grande & quarto de empregada  

Podcast Corpo, Discurso e Território, episódio 11- O quarto de empregada e a morte de Miguel

Podcast Fora da Curva, episódio 22 com Verônica Oliveira, do “Faxina Boa”, falando sobre o futuro do trabalho doméstico

Artigo “O ‘quartinho de empregada’ e o seu lugar na morada brasileira”, da arquiteta Maíra Boratto Xavier Viana e do Prof. Ricardo Trevisan

Artigo “Controle de vida, interseccionalidade e política de empoderamento: as organizações políticas das trabalhadoras domésticas no Brasil”, do Prof. Dr. E Sociólogo Joaze Bernardino

Filme, teaser do documentário “Aqui não entra luz”, de Karoline Maia

 

 

Texto de Alyssa Volpini, estagiária da Assessoria Especial, sob supervisão da Comissão Temporária de Raça, Equidade e Diversidade (CTRED) do CAU/BR

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