
O Brasil precisa superar o modelo rodoviarista de mobilidade centrado em carros, ônibus e caminhões, afirma Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista. Para Raquel, a dependência do petróleo e a priorização do transporte individual e sobre pneus nas cidades são insustentáveis, gerando congestionamentos, poluição e não garantindo acesso ao transporte para todos.
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Rolnik ressalta que a chave para reverter esse cenário é investir em transporte coletivo eficiente e acessível, repensar a infraestrutura urbana e incluir a população no planejamento das cidades. “A mobilidade sustentável vai além do combustível. É preciso mudar a lógica do sistema”, diz.
Em entrevista exclusiva ao Perspectiva CAU, ela compartilha sua experiência em atividades profissionais e didáticas relacionadas à política urbana.
Confira, a seguir, trechos da entrevista, onde Raquel Rolnik aponta caminhos para transformar a mobilidade urbana no Brasil.
Perspectiva CAU: A mobilidade urbana sustentável é muitas vezes associada a investimentos em transporte público de qualidade. Como equilibrar a necessidade de eficiência com a acessibilidade para populações de baixa renda?
Raquel Rolnik: A própria pergunta já deixa claro que é impossível falar em mobilidade sustentável sem abordar a necessidade de sistemas de transporte coletivo de qualidade. Mais do que isso, é essencial que esses sistemas operem com base em uma nova matriz energética. Não adianta pensarmos no futuro das cidades enquanto continuamos dependentes de sistemas de transporte coletivo por ônibus e de transporte de cargas por caminhões, ambos 100% movidos por motores a combustão alimentados por petróleo e seus derivados.
Enfrentamos, na verdade, um triplo desafio. O primeiro é oferecer transporte público de qualidade, acessível para todos, algo que ainda não temos. O segundo é transformar a matriz de mobilidade, hoje dependente do petróleo. Isso não envolve apenas o combustível, mas todo o modelo de transporte baseado em carros, ônibus e caminhões. Estamos falando também de componentes como pneus, que também derivam do petróleo e do próprio modelo do sistema viário que lhe dá suporte, o asfalto. Precisamos avançar para modelos que sejam não apenas eficientes e acessíveis para todos, mas também sustentáveis do ponto de vista ambiental, reduzindo a pegada de carbono e as emissões de gases de efeito estufa.
O terceiro desafio, representado pelas campanhas pela tarifa zero, é fundamental nesse contexto. Essas iniciativas apontam para a possibilidade de o transporte deixar de ser tratado como uma mercadoria que exclui quem não pode compra-la, fazendo com que muitas pessoas simplesmente não consigam se deslocar. Mobilidade é essencial e deve ser universal.
Perspectiva CAU: Como o urbanismo pode promover a integração entre diferentes modais de transporte de forma funcional e acessível?
Raquel Rolnik: A discussão sobre transporte nunca pode estar restrita a apenas um modal. Existe um movimento muito importante de estímulo aos transportes ativos, como caminhar e pedalar. No entanto, esses modais ativos têm limitações relacionadas à distância, às características do local como a topografia. Assim, a grande questão é como promover a integração entre os diferentes modais.
É essencial contar com sistemas de transporte coletivo de massa que sejam adequados e eficientes para atender às necessidades de deslocamentos maiores, como os metropolitanos e os urbanos de longa distância. Além disso, é fundamental complementar esses sistemas com cidades que ofereçam infraestrutura adequada para os modos ativos: calçadas acessíveis e sombreadas, ciclovias segregadas e espaços que permitam a convivência harmônica entre diferentes modais de transporte.
Perspectiva CAU: A sustentabilidade no transporte é muitas vezes vista como um objetivo caro. Como viabilizar políticas que incentivem a transição sem aumentar tarifas para os usuários?
Raquel Rolnik: A questão de o custo ser alto ou baixo depende essencialmente de escolhas de política pública. No Brasil, uma das maiores áreas de gasto público na mobilidade é a implantação de infraestrutura para veículos, como vias asfaltadas, viadutos e túneis. Esse é o setor que consome um dos maiores gastos nos orçamentos públicos.
Eu pergunto: é mais importante investir nisso, para permitir a circulação de carros, ou direcionar os recursos para sistemas de transporte coletivo de alta capacidade e grande eficiência? Trata-se de uma decisão de política pública. Onde é mais relevante e estratégico investir os recursos disponíveis?
Perspectiva CAU: As cidades brasileiras têm apostado em iniciativas como ônibus elétricos e metrôs para reduzir emissões de carbono. Essas soluções são suficientes? Quais lacunas precisam ser preenchidas?
Raquel Rolnik: A primeira questão é que os sistemas de metrô, ou sistemas sobre trilhos, são adequados para grandes cidades e metrópoles. Quando falamos do contexto urbano no Brasil, estamos lidando com cidades de tamanhos muito diferentes. Não necessariamente todas precisam de metrô. O metrô é viável em locais com uma certa densidade de passageiros por hora/sentido. É um modal ideal para regiões metropolitanas, para grandes cidades, mas não necessariamente para cidades menores. Existem modos de transporte sobre trilhos em superfície mais baratos e que podem, também, ser bem eficientes.
Quanto aos ônibus elétricos, assim como os carros elétricos, eles não resolvem o problema da mobilidade sustentável. O desafio não se resume ao tipo de combustível utilizado – seja gasolina, diesel ou eletricidade. A questão está na própria lógica do sistema: o uso de veículos individualizados sobre pneus que circulam sobre vias asfaltadas.
Além disso, o automóvel particular, predominante em nossas cidades, é o sistema mais insustentável. Ele ocupa um enorme espaço nas ruas para transportar poucas pessoas, tornando-se o menos sustentável de todos. Mesmo se mudarmos toda a matriz de combustível dos automóveis particulares para hidrogênio verde ou etanol… No caso dos ônibus, é importante, sim, transformar a frota existente em uma frota elétrica, mas isso não é suficiente.
Precisamos superar o modelo de transporte baseado apenas em ônibus. Isso inclui repensar o próprio modal e a lógica que ele segue. Por incrível que pareça, o velho bonde, evidentemente modernizado, tem sido adotado em muitas cidades como uma alternativa mais sustentável. Ele é menos poluente, mais silencioso, tem maior capacidade de transporte e interfere menos no espaço urbano.
Perspectiva CAU: Pedestres e ciclistas ainda enfrentam grandes dificuldades em cidades brasileiras. Como promover a mobilidade ativa sem comprometer a segurança e a acessibilidade?
Raquel Rolnik: Historicamente, a política urbana e o planejamento urbano privilegiaram o espaço destinado aos automóveis, caminhões e ônibus. Isso se refletiu tanto no desenho das cidades quanto nos investimentos realizados, sempre em detrimento dos pedestres e de outros modos ativos, como a bicicleta. Quilômetros de vias carroçáveis são implementadas, cuidadas e recapeadas com zero calçadas adequadas.
O que é necessário agora é inverter essa lógica. Precisamos de calçadas: retas, bem construídas, limpas, iluminadas, sem obstáculos e sombreadas, para que os pedestres possam circular com segurança e conforto. Isso significa pensar a cidade e a mobilidade a partir das necessidades dos pedestres e dos modos ativos, em vez de tratá-los como sobra do espaço projetado prioritariamente para automóveis, caminhões e ônibus.
Perspectiva CAU: Aplicativos de mobilidade e ferramentas como o BIM têm transformado o planejamento urbano. A tecnologia está sendo usada de forma adequada para promover transporte sustentável no Brasil?
Raquel Rolnik: Infelizmente, a resposta é não. A tecnologia utilizada hoje, especialmente no setor de distribuição de mercadorias, está toda estruturada para operar sobre pneus – utilizando caminhões, motos e carros. Os aplicativos de mobilidade seguem a mesma lógica, intensificando o modelo existente em vez de superá-lo. Nosso grande desafio é mudar esse modelo e não apenas intensificar o uso da tecnologia dentro de uma lógica já insustentável.
Perspectiva CAU: Metropóles como São Paulo e Rio de Janeiro enfrentam congestionamentos diários e alta dependência de carros. É possível reverter essa lógica em médio prazo?
Raquel Rolnik: Apenas uma política de transporte coletivo de massa pode promover uma mobilidade adequada em nossas cidades. Nunca teremos uma mobilidade adequada baseada em carros, ônibus e caminhões. Em nenhuma parte do mundo isso funciona.
O destino do modelo rodoviarista – que é o que estou chamando aqui – é o congestionamento, inevitavelmente. Quando você adiciona mais pistas, elas apenas atraem mais carros, gerando ainda mais congestionamento. Um exemplo claro é Los Angeles, nos Estados Unidos, com suas vias de seis faixas completamente congestionadas e paradas. Não adianta. É uma questão matemática. Simplesmente não cabe.
A matemática é básica: quanto mede cada carro? Quantos metros têm as pistas? Quantas pessoas vivem na cidade? Fazendo essa conta, fica claro que não é possível projetar uma cidade para automóveis, ônibus e caminhões.
O caminho é pensar no transporte coletivo de massa, que ocupa muito menos espaço e transporta as pessoas de maneira muito mais eficiente. Com o mesmo motor e a mesma energia, é possível carregar muito mais passageiros por hora/sentido. Além disso, o transporte coletivo é mais silencioso, menos poluente e traz inúmeros outros benefícios. Não há alternativa: o futuro da mobilidade passa por esse modelo.
Perspectiva CAU: Como envolver a população no planejamento e na tomada de decisões relacionadas à mobilidade sustentável?
Raquel Rolnik: Infelizmente, as políticas urbanas no Brasil são decididas em um diálogo restrito entre as empresas que fornecem serviços urbanos – como concessionárias de ônibus, empresas de coleta de lixo, empreiteiras de obras públicas –, as empresas que produzem a cidade, como construtoras e incorporadoras, e o mundo político. Esse é o modelo decisório predominante hoje.
Os interesses da maioria da população, suas necessidades e sua qualidade de vida não entram nessa equação. Todo o esforço que fizemos, no âmbito do planejamento urbano, para ampliar a participação popular nas políticas urbanas – um esforço considerável iniciado em meados dos anos 1980 – infelizmente foi esvaziado. O que deveria ser uma participação genuína se transformou em uma espécie de teatro, um rito para fingir que estamos construindo de fato uma política dialogada, que ouve os usuários, na diversidade de sua demanda. O que temos no Brasil hoje é, infelizmente, uma falsa participação que não impacta em nada os processos decisórios reais.
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