ARTIGO

Reconstruir sim, mas como?

 

Luís Fernando Zeferino é arquiteto e urbanista, conselheiro do CAU DF nos mandatos de 2018 a 2020, de 2021 a 2023, e de 2024 a 2026.

 

Em meio a mais uma tragédia, agora assolando o Sul do país, além da perda de bens e, principalmente, de entes queridos, surge um questionamento: a tragédia poderia ser evitada? Quando tratamos da ocorrência de eventos climáticos extremos e pontuais, a resposta mais imediata seria não. No entanto, ao analisarmos os efeitos de tais eventos, a resposta tende a ser diferente, pois passamos a enxergar que esses efeitos poderiam sim ser mitigados, ou até mesmo, em alguns casos, evitados. E essa análise envolve uma série de fatores. Entre eles, destaco aspectos histórico-culturais, políticos e técnicos.

 

Ainda na formação do Império Romano, seis ou sete séculos a.C, já haviam preocupações de planejamento urbano para a criação de novas cidades e assentamentos humanos. Questões de acessibilidade com pavimentação, abastecimento de água, coleta de esgotos, além de outras ligadas ao convívio, esporte, lazer e culto religioso já se apresentavam como questões essenciais da vida em comunidade e que, portanto, deveriam ter a devida atenção dos governantes.

 

Em nossa colonização herdamos certo grau de planejamento, peculiar em aspectos formais, ricos, cenicamente falando e menos ortogonais no traçado urbano. Mas esse processo, na grande maioria dos casos, existiu no nascimento, na formação original dos assentamentos, com certo cuidado na implantação do sítio, de onde mais tarde se desenvolveriam as nossas cidades. Salvador, Belo Horizonte, Teresina, Goiânia e Brasília, em maior ou menor escala, são alguns exemplos. No entanto, logo após sua fundação, as cidades começaram a adquirir características rizomáticas. O DF, de algum modo, ainda preserva uma cultura de planejamento urbano, mas também sofre com ocupações irregulares e com eventos climáticos extremos, como as chuvas torrenciais do início de fevereiro passado.

 

Desde a formação do nosso país, muitos governos se sucederam e a grande maioria deles pautou suas administrações em resolver ou mitigar problemas advindos de ocupações irregulares. Formou-se uma cultura de primeiro ocupar e depois resolver questões de infraestrutura urbana. E em todas as cidades brasileiras infelizmente isso acontece, até mesmo em nossa bela e planejada capital. E quais as consequências disso? Um custo social e econômico muito elevado, devido a ausência de condições mínimas, em muitos casos, de salubridade, segurança e acesso aos serviços públicos de modo eficaz.

 

Ao permitir a ocupação irregular, o Estado se omite e, em sua leniência, torna-se cúmplice e corresponsável das tragédias ditas naturais. Ninguém ocupa determinada área sem energia elétrica e água, sem necessidade. E não trataremos de questões tecnológicas que viabilizam tais ocupações, hoje em dia. Me refiro à mão do Estado, que muitas vezes viabiliza esses serviços. No entanto, segurança é imprescindível. Morar perto dos centros urbanos em um morro, palafita, vale ou qualquer área de risco, por mais prático ou belo que seja, implica em correr riscos, que podem ter um preço muito alto, justamente devido à sua vulnerabilidade a fortes intempéries.

 

Então, o que fazer quando uma tragédia natural acontece? Em primeiro lugar, fazer o que o povo brasileiro sabe bem: ser solidário, e isso temos visto, e isso é bonito de se ver, apesar das circunstâncias terríveis. Mas, qual deve ser o segundo passo? Reconstruir? Sim, mas como? Aqui chamo à reflexão todos os gestores, líderes, entidades governamentais ou não, e, principalmente, os profissionais da arquitetura, urbanismo, agronomia e de todas as engenharias voltadas ao planejamento e execução de obras públicas nesse país, em especial aos órgãos de classe que representam estes profissionais. O papel dos técnicos é planejar essa reconstrução, viabilizar isso, é papel dos políticos de bem do nosso país.

 

Aplicar centenas de milhões de reais em reconstrução, sem reflorestar áreas degradadas ao longo de cursos d’água, sem desassorear rios e lagos, sem investir em saneamento básico e drenagem, e sem planejar as novas habitações é investir em algo que parece fadado a sofrer novamente a mesma tragédia. Milhões de metros cúbicos de sedimentos estão hoje no fundo do Lago Guaíba e de tantos outros rios brasileiros. Tratar a questão ambiental de forma demagógica, ou reconstruir casas, bairros e cidades sem planejamento adequado, é um perder a oportunidade de dar um salto de qualidade e melhorar, apesar da adversidade. O paliativo emergencial é necessário e essencial, mas voltar ao mesmo patamar é inaceitável.

 

 

*Artigo publicado no PDT12. ** Artigos divulgados neste espaço são de responsabilidade do autor e não correspondem necessariamente à opinião do CAU/BR.

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