O ar da cidade liberta”, diz um ditado medieval alemão. É essa a sensação de um viajante premido pelas dificuldades de sua própria cidade ao se encontrar em um ambiente urbano diferenciado. Não em uma pacata urbe onde todos se conhecem, mas na segunda mais populosa metrópole mundial, com 25 milhões de habitantes.
Com mais de dois mil anos de história, devastada pela guerra dos anos 1950, a capital da Coreia do Sul, Seul, é hoje uma cidade moderna, de enorme vitalidade social, econômica e política, como os recentes acontecimentos que levaram à derrubada de sua presidente demonstraram. O povo gentil parece desconhecer o medo que afeta o mundo pelas provocações nucleares do reizinho do país vizinho. Seul é a quarta metrópole mundial em negócios e renda, após Tóquio, Nova York e Los Angeles.
É nesse ambiente que a União Internacional de Arquitetos (UIA) promove, e a associação coreana de arquitetos organiza, o 26º Congresso Mundial de Arquitetos, o maior evento da arquitetura, que se realiza a cada três anos em um dos 138 países membros da UIA. Os arquitetos coreanos propuseram como tema do encontro uma reflexão sobre a essência da cidade contemporânea, ilustrando com a expressão, em jogo de palavras, “Soul of Seoul”, a alma de Seul, a alma da cidade.
Foi uma boa escolha.
É claro que o tema abre um mundo de indagações e de respostas. E essa é uma de suas riquezas. Mas, em Seul, parece ser impositivo compreender nessa equação o papel do espaço público e das arquiteturas que o conformam. Quanto da vitalidade da cidade, do seu bem-estar, do seu desenvolvimento excepcional é suportado por seu sistema urbano com evidente equidade na distribuição dos serviços públicos? Pela simultaneidade de usos e de funções urbanas em quase todo o tecido urbano da capital, que fazem toda ela vibrante e acolhedora?
Diferentemente das cidades que segregam funções e moradores, em Seul o que emerge é a mescla. De um modo esquemático, a cidade se organiza através de grandes avenidas em retícula, que conformam superquadras gigantes. Nas avenidas, de largas calçadas e excelente conservação, se constroem grandes edifícios corporativos ou de serviços, mas também residenciais; já o miolo das superquadras é constituído por edificações de baixa altura, produzidas por economias mais modestas, em ruas estreitas e ruelas, compartilhadas por pedestres e veículos. Nesse interior de quadra, o comércio é efervescente, em sinergia com serviços e residências. Com infraestrutura completa, metrô que alcança toda a metrópole, segurança pública integral, paisagismo exemplar e equipamentos culturais de excepcional concepção, Seul é disponível à interação social.
Sendo o maior produto da cultura, toda cidade expressa e forma sua sociedade. Não é mercadoria a ser transportada. Não obstante, a experiência de uma também é a experiência de todas, na dimensão contemporânea.
Há dias, no GLOBO, o jornalista Merval Pereira comentou estudo do economista Cláudio Frischtak, sobre investimentos em transporte, energia elétrica, saneamento e telecomunicações, necessários para tornar moderna a infraestrutura do país. A modernização requereria, além de potentes recursos e nova governança, “o reforço no âmbito técnico dos processos de planejamento.”
Encomendado pelo Ipea, o estudo poderá balizar políticas públicas. Contudo, apesar de sua abrangência, caso queiramos, mesmo, alcançar o século XXI, precisaremos agregar à infraestrutura a dimensão urbana e metropolitana, onde vivem 85% dos brasileiros, como fator estratégico para o desenvolvimento e o bem-estar social.
Em Seul, o Instituto de Arquitetos do Brasil recebeu a bandeira da UIA, simbolizando a outorga da responsabilidade para organizar o próximo Congresso Mundial, que se realizará em 2020, no Rio de Janeiro. Sob o tema “Todos os mundos, um só mundo, arquitetura 21”, tanto o evento como a sua preparação poderão servir para debatermos outras experiências e avaliarmos os rumos de nossas cidades. Sabendo-se que esta geração construirá mais do que qualquer outra geração brasileira jamais construiu, é o tempo de refletir sobre a cidade que queremos neste novo século. Nossas cidade, tão caidinha, tão mal tratadinha, como diria o poeta, pede reencontrar-se.
Publicado em “O Globo” de 09/09/2017
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