
Todos nós temos uma ideia mais ou menos clara do que é um poeta e o que é uma poesia. Mas, além do uso das palavras para escrever um poema, acredito, sinceramente, que pode-se ser poeta exercendo qualquer atividade ou profissão.
Pessoalmente creio que um poema é, sempre, uma síntese. Uma imagem definida com palavras, no caso de um poema como todos nós o conhecemos, que nos faz ver algo que a maioria de nós não consegue enxergar mas está ali, na nossa frente, e que o poeta nos revela.
Um exemplo que posso citar é o haicai composto pelo saudoso amigo e poeta Luiz Bacellar, editado no seu maravilhoso “Crisântemo de Cem Pétalas”, em parceria com Roberto Evangelista e gravuras de Jair Jacqmont Cantanhede, chamado “do Esforço” (Página 93).
O brilho da mica
Ao sol de um caracol
No caminho fica
Este haicai nos faz ver uma imagem que já existia, ali, na nossa frente, e não fomos capazes de enxergar, mas, com a ajuda da sensibilidade do poeta, a imagem se faz clara, verdadeira e bela.

Um outro exemplo, desta vez fugindo das palavras escritas e entrando pelos meandros do futebol, temos os três gols mais belos da história, que foram os três gols que o nosso “rei” Pelé não marcou na copa do mundo realizada no México, em 1970. Todos eles verdadeiros poemas.
O primeiro foi aquela cabeçada contra a seleção da Inglaterra que, subindo, dentro da pequena área, todos esperavam que Pelé tentasse “cobrir” o goleiro, mas ele, num momento de autêntica mágica, cabeceou para baixo, para que a bola quicasse no chão e entrasse no gol. Banks, o goleiro da seleção inglesa, espalmou a bola para fora no que muitos acreditam tenha sido a maior defesa de todos os tempos. Não foi à toa que Banks foi escolhido o melhor goleiro da copa de 1970.
Os dois outros gols não marcados foram, ambos, contra a seleção do Uruguai. No primeiro Pelé percebendo que Mazurquievsky estava adiantado, do meio do campo chutou a bola tentando “cobrir” o goleiro que voltou correndo tentando uma defesa que era impossível. A bola bateu na trave e foi para fora. No segundo, de um passe de Jairzinho, Pelé, sozinho com o goleiro, corre em direção à bola para, no que todos esperavam, ele fosse dominá-la, driblar o goleiro e fazer o gol. O “rei”, num momento de genial inspiração, passou por cima da bola, que continuou seu percurso, e deu a volta por trás de um desconcertado Mazurquievsky, para apanhá-la por trás e chutar contra a meta uruguaia. A bola foi para fora.
Essas três magníficas jogadas ficaram, para sempre, marcadas em nossos corações e mentes como um dos momentos mais belos do futebol. Foram momentos de autêntica poesia, foram momentos de síntese perfeita. As três jogadas estavam ali, prontas, mas foi preciso um “rei-poeta-jogador” para vê-las e executá-las.

Com a obra do arquiteto Severiano Porto acontece mais ou menos a mesma coisa. O centro de pesquisa de Balbina, que inspirou o título do livro sobre a obra do arquiteto-poeta, é um desses momentos de síntese perfeita. O prédio já estava lá, pronto, quando Severiano o viu e, traduzindo sua visão em plantas, cortes e fachadas, nós também pudemos vê-lo. Um verdadeiro poema, um poema na floresta.

A obra de Severiano está cheia desses momentos de beleza e síntese. Reconhecê-los, registrá-los e comentá-los é, mais que qualquer coisa, um enorme prazer. Recentemente, numa entrevista transmitida por um canal de televisão a cabo, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha tocou num ponto com o qual eu concordo em gênero, número e grau. Em seu comentário ele afirmou que até cerca de trinta ou quarenta anos atrás era uma preocupação maior na formação dos arquitetos a adequação da construção ao entorno, construído e natural, o que inclui, naturalmente, o clima; e que, ao adotar indiscriminadamente modelos de arquitetura importados no bojo de pacotes de pretensas tecnologias ditas avançadas, corríamos o risco de perder este conhecimento. Completando a ideia, Paulo Mendes da Rocha afirmou que agora, enfrentando uma crise global de energia e os problemas levantados pelos desafios da sustentabilidade, recuperar este conhecimento e estas práticas se revestem de uma urgência sem precedente.
Pois, tal e qual as pirâmides do Egito, a arquitetura de Severiano está cheia de segredos e nos ensina sobre sustentabilidade desde muito antes desta palavra virar moda e justificar o uso de elementos, implementos e procedimentos de arquitetura equivocados e não apropriados ao nosso clima. Os segredos estão expostos em sua obra, há que se querer lê-los.
Uma das mais marcantes características de uma boa obra de arquitetura é, sempre, o respeito e reverência com que esta obra se relaciona com seu entorno, natural ou construído. Até porque quanto mais perfeito é este relacionamento maior a harmonia entre o prédio a natureza, e esta harmonia é o que tem como consequência o que se chama de sustentabilidade.
Elementos simples como o beiral e a varanda que sombreia as paredes e as protege da chuva (como na Universidade Federal do Amazonas); o cobogó que controla a iluminação diminuindo o aporte de energia térmica a ela relacionada sem, contudo, impedir a ventilação (como no Fórum Enoch Reis); a exaustão do ar aquecido do ático (como na sede da SUFRAMA); a orientação do prédio em função do movimento do sol e dos ventos predominantes (Ver foto 07); elementos simples mas capazes de proporcionar conforto aos usuários da obra com significativa economia de energia.

Duas outras qualidades impregnam a obra de Severiano; a primeira é o respeito que Sevê sempre demonstrou pelos materiais e pelo saber fazer local; a segunda é a capacidade que seus projetos têm de desaparecer no cenário em que eles são construídos. A soma destas características pode-se ver na Casa Schuster que faz uso de materiais e técnicas construtivas locais e que desaparece no meio da floresta (Ver foto 08 e 09), e a sede do Tribunal Regional Eleitoral, um dos prédios mais bonitos de Manaus mas que a maioria das pessoas não o notam, tal a integração deste com as árvores do entorno.
O pouco caso com que a obra de Severiano é tratada pode ser considerada displicência e irresponsabilidade uma vez que, junto com a deterioração, demolição e modificações sem critérios, de sua obra, perde-se a beleza que poucos artistas têm a capacidade de criar, além do conhecimento sobre arquitetura apropriada ao nosso clima, aos nossos materiais e à nossa maneira de construir e viver.
Além do mais, esta arquitetura, como disse o mestre Lúcio Costa sobre arquitetura colonial brasileira, “…nos ensina boas lições de simplicidade, perfeita adaptação ao meio e à função, e consequente beleza…”.

A coifa para a exaustão do ar aquecido do ático como partido arquitetônico.


Roger Abrahim é arquiteto e urbanista, autor do livro “Poesia na Floresta”, sobre a obra de Severiano Porto, publicado pela Editora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Dedica-se, nos últimos vinte anos, a proferir palestras e conferências relacionadas com meio ambiente, energia e sustentabilidade. Desde 1971, até 2013, foram mais de sessenta projetos de arquitetura e urbanismo, além da execução de alguns destes. Tem cerca de dez trabalhos publicados, relacionados, principalmente, à urbanismo, meio ambiente e energia. Na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nilton Lins, tem lecionado inúmeras disciplinas, dedicando-se de maneira especial à urbanismo e conforto ambiental. Foi diretor, presidente e vice-presidente no IAB/AM – Instituto de Arquitetos do Brasil; membro do COSU – Conselho Superior – por mais de doze anos e vice-presidente regional da Direção Nacional, IAB/DN e; como representante do IAB/DN participou da Assembléia Geral da UIA – União Internacional de Arquitetos e coordenou o grupo de trabalhos internacional “Cidades e Preservação das Florestas” desta entidade por seis anos. No sistema CREA/CONFEA foi membro do Conselho Regional do Amazonas por doze anos e membro do Conselho Federal por um mandato.
Uma resposta
Profª Roger Lembrei perfeitamente de suas aulas e hoje elas me fazem sentindo….Grande abraço e obrigada!