Sem qualquer possibilidade de interferir na redação final da Nova Agenda Urbana, já definida em pré-conferências, uma delegação de técnicos do Ministério das Cidades, apoiada pelo Itamaraty, representará oficialmente o Brasil na Habitat III que se realizará em Quito, no Equador, entre os dias 17 e 20 de outubro de 2016. A Secretaria Nacional de Habitação, Henriqueta Arantes, chefiará a missão.
Nossos representantes sequer participaram da elaboração do Relatório Brasileiro, enviado para o Secretariado da Habitat III em setembro de 2015, ou seja, há mais de um ano, ainda na administração federal anterior. E mesmo se quisessem, não teriam condições de rever o documento que recebeu algumas críticas por lacunas na abordagem de alguns temas e propostas vagas. O Conselho Nacional das Cidades (ConCidades) coordenou a elaboração do documento, cuja relatoria foi entregue ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Entre os compromissos agendados, a delegação brasileira participará de uma “mesa redonda de alto nível” com o tema “Habitação Adequada e Acessível”, e um “networking event” sobre “Habitação Social como Indutora do Desenvolvimento Urbano Sustentável”.
O CAU, as Prefeituras de São Paulo, do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e de Porto Alegre, a Frente Nacional de Prefeitos, o Instituto Polis, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Tribunal de Contas da União e o IPEA são outras instituições brasileiras que participarão da conferência.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil estará representado oficialmente na Habitat III pelo seu presidente, Haroldo Pinheiro, e pelos conselheiros federais Lana Jubé, coordenadora da Comissão de Política Urbana e Ambiental, e Fernando Diniz Moreira, coordenador da Comissão de Relações Internacionais. Presidentes de vários CAU/UF igualmente estarão presentes. A delegação leva à Habitat a Carta-Compromisso do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil sobre a Nova Agenda Urbana, em que a instituição se compromete a desenvolver ações junto aos governantes e à sociedade pela implementação no Brasil da Nova Agenda Urbana.
Por sua vez, a Frente Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que reúne diversos movimentos sociais, estará em Quito para participar do Fórum Resistência Habitat III – Todas as Vozes em Resistência, com o objetivo de “resgatar e reforçar e enfatizar a importância das questões sociais e dos direitos humanos na definição da Nova Agenda Urbana”.
Clique aqui para acessar o relatório brasileiro.
LACUNAS – O documento brasileiro, ao comparar o Brasil atual ao de 20 anos atrás, quando foi realizada a Habitat II (Istambul), afirma que o crescimento econômico resultou em avanços como o PAC, o programa Minha Casa Minha Vida e mesmo as obras da Copa 2014. Nada fala, contudo, da qualidade das obras, das contratações feitas sem projeto completo e do impacto disso nas cidades.
Outra lacuna diz respeito ao aumento do preço da terra, que vem provocando gentrificação e colocando a população cada vez mais longe dos centros pulsantes das cidades. Para o arquiteto e urbanista Ernesto Galindo, que atuou como membro do IPEA na redação do documento brasileiro, essa é uma questão que não pode ser mais adiada. Ele foi um dos palestrantes do III Seminario Nacional de Política Urbana e Ambiental que o CAU/BR promoveu em Manaus, em setembro de 2016, por iniciativa das Comissões de Política Urbana e Ambiental e de Relações Internacionais, com apoio do Fórum de Presidentes.
Mais um ponto que faltou abordar, lembra ele, foi o impacto negativo do aumento da frota de veículos, principalmente de motos, alargando o tempo de deslocamento diário da população, acirrado também pelas distâncias maiores a percorrer.
Galindo aponta ainda uma terceira questão não abordada no relatório: o padrão de consumo da água, “aliado às más gestões dos recursos hídricos, escancarando os limites da expansão urbana”. Outra lacuna do relatório é a falta de proposta para o financiamento das cidades. “Não existe mais do que trinta municípios do país que tenham mais recursos próprios do que transferência, mesmo algumas capitais”.
O relatório do Brasil também não trata dos desafios da conciliação do meio ambiente com a urbanização, como a proteção dos mananciais, permeabilização do solo, os parques públicos e os corredores ecológicos.
De qualquer forma, na visão do arquiteto Ernesto Galindo os temas tratados em conferências como a Habitat não têm importância por si mesmos. “A conferência funciona como apontamento de diretrizes. Sem pressão social elas não entrarão na agenda dos governos e, nesse sentido, a academia e a sociedade civil têm um importante papel a exercer”.
“A maior parte das pessoas não sabe que existe as ONU quanto mais a Habitat. Mesmo sem a conferência, o Brasil já tem marcos legais importantes na área urbana como o Estatuto das Cidades e o Estatuto da Metrópole. Teremos agora que trazer isso para a realidade, conquistando a população para essa causa”.
Ernesto Galindo lembra que até as manifestações de 2013, foi tinha ocorrido redução de tarifas de ônibus em cinco cidades brasileiras, sendo que em quatro casos por decisão judicial. Hoje são mais de 40 cidades.
Clique aqui para acessar a apresentação de Ernesto Galindo (em PDF).
DIREITO À CIDADE – Entre os princípios adotados pelo relatório brasileiros está “o reconhecimento do direito à cidade como função fundadora na produção do território”. Os contornos desse direito foram definidos pela “Carta do Rio de Janeiro”, apresentada pelos movimentos sociais durante o V Fórum Urbano Mundial que aconteceu no Rio em 2010 e que se intitulou “O Direito à Cidade unindo o urbano dividido”.
O entendimento é que todos tem o direito de uso, sem privilégios ou distinções de qualquer espécie, do espaço público e coletivo da cidade, sem abstrair o dever do Estado assegurar que a produção da cidade busque a realização de suas funções sociais. Nesse sentido, é importante que as políticas urbanas sejam definidas e implementadas de forma participativa. “O direito à cidade revela, portanto, a relação das pessoas com a cidade em perspectiva de integralidade, ao considerar que a cidade em si, a forma, as infraestruturas, a arquitetura, não é o sujeito de direito”. O relatório destaca ainda que o direito às cidades sustentáveis, presente no Estatuto da Cidade.
A Nova Agenda Urbana, entretanto, preferiu adotar o conceito de “cidades para todos”, adicionando que em alguns países essa definição coincide com o Direito à Cidade. O Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU), que reúne dezenas de entidades e movimentos sociais, diz essa associação é incorreta.
Em carta de junho de 2016, o Fórum afirma que “o conceito de ‘cidade para todos’ surgiu apenas recentemente e se relaciona prioritariamente com a dimensão da igualdade e da não-discriminação nas cidades, enquanto o conceito de Direito à Cidade vem sendo construído ao longo de várias décadas e reafirma o sentido da cidade como bem comum”. É um conceito muito mais amplo, portanto, do que o primeiro, ‘ao articular as diversas dimensões das cidades e da vida urbana (espaços públicos, fundiária, habitacional, etc.), com uma abordagem de direitos humanos para as cidades”. Isso significa a promoção da ideia de cidadania extensiva, o que envolve, por exemplo, a população em condições de rua e os refugiados.
Por Júlio Moreno. Publicado em 13/10/2016