VILA SAHY: REALIDADE E OPÇÃO
Por Valter Caldana, conselheiro federal
Mais um mega deslizamento no litoral norte de SP.
Diante da tragédia anunciada, há que se fazer um enorme esforço para que este texto não se torne um rol de obviedades, falando o que todos sabem e muitos escreveram nos últimos dias.
Se o momento é de dor, de solidariedade, de mostrar o que a sociedade ainda consegue ter de melhor, a hora não é de apenas apontar falhas. É, sobretudo, de propor soluções. Aqui se apresentam algumas, constantes em projeto de 2016 destinado a evitar o ocorrido.
Realizado pelo Laboratório de Projetos e Políticas Públicas da FAU Mackenzie com a parceria da Escola de Arquitetura de Paris Leste para a UGP/Projeto Serra do Mar do governo do Estado de São Paulo, usando técnicas participativas e colaborativas, foi composto de um plano de bairro e projetos locais para a Vila Sahy, centro da atual tragédia onde se perderam patrimônio e vidas.
Com soluções para coibir de modo ativo (não apenas repressivo, quase sempre ineficiente) a ocupação irregular da serra nas áreas de preservação e a ocupação excessiva nas áreas de risco, a Vila Sahy foi escolhida pela equipe como uma espécie de projeto piloto justamente por suas características peculiares. Além de grande quantidade de pessoas morando em área de risco elevado, reunia em si todos os elementos espalhados pelos quase 200 km de costa com ocupação similar, frágil e perigosa.
Não é hora nem lugar para detalhes, mas é importante destacar aqui algumas propostas estruturadoras do projeto de 2016 que ultrapassam a fase de análise e propõem ações integradas que vão da escala regional à escala local. Da preservação ambiental ativa e sistemas de saneamento e transporte à moradia, comércio, serviços e cultura.
A primeira delas é a proposta de elevar a densidade nas sedes dos municípios e aumentar a mobilidade entre os centros e os subcentros consolidados ao longo da estrada, através da implantação de sistema de transporte público intermunicipal de média capacidade.
Passo essencial, pois é elevando a oferta de moradia nas cidades e aumentando a mobilidade entre elas que se consegue diminuir a atratividade econômica dos condomínios de turismo e classe média alta que se situam na faixa beira-mar e que provocam a busca por terrenos baratos e por vezes irregulares no pé da serra, quando não nela mesma, em função da facilidade de acesso à oferta de emprego.
A segunda proposta foi o incentivo ao comércio e serviços locais nos subcentros existentes, como a Vila Sahy, possibilitando a criação de emprego e renda. Isto associado à construção de uma intensa mobilidade transversal ao eixo da rodovia, interligando a serra ao mar para diminuir fortemente a segregação e facilitar a mobilidade de pessoas, bens, serviços e águas.
É preciso assumir os efeitos nocivos provocados pela rodovia, sendo o principal deles sua condição de barreira aos fluxos naturais e humanos. Atravessá-la deve deixar de ser, urgentemente, uma aventura e integrar as áreas ao pé da serra com a beira-mar é essencial para alterar a estrutura valor da terra e, assim, a estrutura de uso e ocupação do solo.
Por fim, especificamente para o Sahy, o projeto de 2016 contemplava o direcionamento do fluxo de águas, a criação de lagoa de contenção para o controle de vazão, a regularização fundiária das ocupações existentes. Previa, ainda, melhorias na infraestrutura de saneamento, a relocação de aproximadamente 180 famílias que se encontravam, àquela época, em área de risco e a implantação de dois condomínios residenciais para sua transferência.
Se cabe reconhecer a atipicidade das chuvas deste final de semana, é preciso também lembrar que todos sabemos das fragilidades geológicas, da ocupação inadequada, dos efeitos perniciosos e deletérios do patrimonialismo e da mercantilização excessiva da natureza e da terra, do descuido geral, em especial privado, com as condições de desenvolvimento urbano e com ocupação daquela faixa do litoral. Todos sabemos da tragédia de 1967 em Caraguatatuba, e todos sabemos que não fora o heroico tombamento da Serra do Mar nos anos 1980 a situação seria muito pior.
Apresentado o projeto, é preciso alertar para a necessidade da alteração radical da maneira como prioridades e políticas públicas são encaradas pela sociedade. Neste sentido, o CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo apresentou propostas a todos os candidatos a presidente, governadores, senadores e deputados nas últimas eleições.
Não obstante, as decisões de ação “do governo” não são isoladas. São fruto de movimentações da sociedade e de suas pressões, legítimas ou não. O governo mais do que age, reage. Isto é a Política. A chuva, todo janeiro, fevereiro e março, vem. Ela é uma realidade, e o que fazer com ela é uma opção. Isto é Política Pública.
Valter Caldana. Conselheiro Federal do CAU-BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil) e Coordenador do LPP (Laboratório de Projetos e Políticas Públicas da FAU Mackenzie/SP)
Fonte: O Estado de S.Paulo (Blog do Fausto Macedo), edição online de 23 de fevereiro de 2023