Sabe o livro que eu não publiquei? E o CD que não gravei? Não, não sabe… e certamente não lerá um ou escutará o outro, nem por isso se porá a lamentar. E não só porque sou escritor medíocre ou sofrível cantor, mas, sobretudo, porque jamais soube da existência nem de um nem de outro. Suas ausências não chegaram a se constituir em demanda reprimida.
Mas sabe aquele casarão que você avistava sempre que ia visitar seus tios? E a escola em que estudou? Pois não é que ruíram? A falta se fez sentir, não é? Patrimônio, mesmo que por simples afeição, constitui uma demanda imediata por sua preservação. Por sua presença e não pela ausência. O casarão, por já existir, é que se torna uma necessidade cultural sua; a escola, certamente de mais gente, e é assim que se vai construindo a noção de patrimônio coletivo, nacional e até da humanidade.
A demanda pelo patrimônio, ao contrário do meu livro ou CD, não é determinada pela sua produção futura e eventual, mas por sua existência prévia. Mas também é preciso que se o sinta. Se valore. Através de critérios estéticos, históricos ou etnográficos.
O Estado brasileiro determinou, em 1937, que essas escolhas iam se chamar tombamento, que se inscreveriam em livros próprios e que um órgão, que já teve vários nomes, mas que hoje atende por Iphan, seria responsável por fiscalizar se eles estavam direitinho, ou, em alguns casos, que ele próprio arregaçasse as mangas e fosse lá dar um jeito na situação.
Em seguida, alguns estados e uns tantos municípios também criaram seus próprios institutos de preservação, cumprindo, mais ou menos, as mesmas funções que o congênere federal. Dito assim, parece que nossos bens coletivos ou de relevância institucional podem ser legados ao porvir, que receberá nossa herança histórica e cultural da mesma forma que lhe repassamos a genética e, por vezes, pecuniária.
Digo tudo isso, porque tomo conhecimento de que o Iphan sofre mais uma ameaça, vinda exatamente de quem tem dever de apoiá-lo: o governo federal. Não tenho dados para discutir a eficácia de uma intervenção militar, mas tenho estudado o fenômeno da retração urbana, no Rio e em outras tantas cidades, e posso garantir que em nenhuma delas achou-se saída através de manu militari.
Paradoxalmente, a economia criativa tem sido um dos principais instrumentos para a reinvenção de cidades que atravessaram processos semelhantes. Manchester, na Inglaterra, um caso extremo, em dado momento tinha perdido metade de sua população e precisou substituir seus teares, famosos desde os tempos difíceis dos romances de Dickens, por uma cena cultural, principalmente musical, que conseguiu estancar o processo e impedir a deterioração geral da cidade.
A notícia de que o Ministério do Planejamento cogita transferir verbas e cargos do Iphan para fazer face à intervenção militar no Rio de Janeiro pegou-me em visita ao Estado do Acre. A emoção de visitar a casa de Chico Mendes, em Xapuri, é uma aula e um soco no estômago. Elevada a Bem Tombado Nacional e mantida de forma digna pelo Iphan, não é apenas um imóvel de madeira tosca, cuja altura da porta leva-nos a curvarmo- nos, numa atitude que, se é verdade que as grandes tragédias podem nos infundir, as humildes casas dos demais seringueiros têm a mesma reduzida altura de teto.
Há, contudo, outra porta, que dá para os fundos do terreno, a intuir os tiros que da mata partiram para sujá-la de sangue, ainda visível, abre um capítulo tormentoso da nossa história recente. Não se lê, mas se vive e, de certa forma, também ali se morre.
Em dezembro deste ano, o assassinato de Chico Mendes completará 30 anos. Os primeiros tombamentos feitos pelo Iphan, de 1938, terão 80 anos.
Olhei comovido, a casinha, estranhamente, verde e rosa, e pensei o quão importante ela é, não só para lembrar um assassinato, mas tentar impedir que haja outros. A função do patrimônio é não deixar esquecer. E quando a história se repete, lembrar de Marielle.
* Carlos Fernando Andrade é arquiteto e urbanista, conselheiro federal do CAU/BR pelo RJ
Fonte: Jornal do Brasil